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Roubo de perspectiva (Ladrões de Bicicleta – 1948)

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“Ladrões de Bicicleta” é um desses “clássicos obrigatórios” para quem estuda cinema. É um dos filmes mais representativos do Neorrealismo Italiano, movimento de cinema que resultou da sociedade no país após a Segunda Guerra Mundial. A reflexão sobre  valores dos seres humanos e das coisas já completou quase 70 anos – a produção foi realizada em 1948, mas ainda é assustadoramente atual.

A via-crúcis do protagonista Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) começa quando a bicicleta, principal instrumento de trabalho dele, é roubada. Para manter o emprego que poderia ser a solução para a miséria de um casal e duas crianças, ele precisa reencontrar o objeto que poderá garantir o sustento da família.

Interessante notar uma característica fundamental da bicicleta que falta ao pai: ela detém o poder da subsistência. É um determinante da discussão que Vittorio De Sica propõe aos outros seis roteiristas do filme. Em uma sociedade puramente capitalista – vale lembrar que o realizador era socialista declarado – os bens são mais valorosos que os proprietários. Em meio às inúmeras analogias apresentadas nos 90 minutos de duração, é possível notar um convite do diretor para que o espectador se permita sentir empatia pelos outros.

 

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Antonio chega com a bicicleta em casa. O objeto o faz ser mais valioso.

Existem dois roubos de bicicletas na história e, como na maioria de bons filmes cíclicos, os valores se alteram. De Sica transforma a expectativa do público para criar um choque. É quando todas as discussões se fecham, porque Antonio nunca realmente sai das condições em que vive, mas muda de perspectiva tanto para si quanto para a audiência.

O jogo de identificação e solidariedade provocado ganha diversos níveis. Há o senhor idoso que, a princípio, parece envolvido com o ladrão e se torna vítima de Antonio. Quando se compreende as condições de vida do possível cúmplice e o protagonista continua a agredi-lo, quem assiste ao filme pode ficar contra aquele por quem torcia desde o começo.

Para representar esse mundo de sofrimento, De Sica usa diversos recursos. As vestimentas e meios de locomoção representam status. Sem chapéu, Antonio é apenas mais um desempregado. Com ele, ainda se continua na esperança de manter o emprego enquanto procura a bicicleta. Quando atinge o sonho de uma vida sustentável, usa um quepe que é parte do uniforme. Da mesma forma, a representação de todos os que possuem um modo de transporte próprio que não dependa do governo é diferenciada.Mesmo que a bicicleta não dê a notoriedade de um carro, é um símbolo de elevação de “classe” para a família Ricci. Em certa cena, ele precisa pegar um ônibus e, desnorteado, passa na frente de outros que já estavam na fila de espera. Um deles, ironicamente, lamenta não poder simplesmente embarcar: “Seria bom, não?”. Todos estão na mesma situação de opressão e falta de espaço.

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A tragédia de não ter. Ricci pai e Ricci filho perdidos na rua.

Além da escassez de recursos em decorrência da Segunda Guerra, De Sica não possuía muitas técnicas que se tornaram disponíveis nos anos seguintes ao lançamento do filme. Mas apenas com o que tinha, já fez um grande trabalho de direção. Como parte do Neorrealismo, buscou uma linguagem mais verossímil para a trama. Algum diretor atual usaria câmera tremida e seguiria os personagens para simular elementos visuais documentários. Na época, ele contava com atores desconhecidos filmados diretamente na rua,em cenários reais. O movimento de câmera, porém, segue os personagens através dos ambientes. Antonio e o filho frequentemente caminham pela rua. O enquadramento os acompanha de um plano geral para outro. Os dois planos gerais sempre destacam as estruturas e edifícios da cidade em detrimento dos protagonistas das cenas.

Quando se compreende a totalidade dos valores, motivos e objetivos da maioria dos personagens de Ladrões de Bicicleta, é impossível não pensar em discursos ouvidos diariamente na imprensa brasileira no momento presente. Entre gritos de ódio e incompreensão, o convite à empatia feito por Vittorio De Sica parece faltar para muitos que querem tanto odiar o diferente. Por isso, o filme se mantém atual, o que não necessariamente é bom para a realidade de hoje.

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