Contos de fadas são, na maioria, sombrios e repletos de conceitos inapropriados para crianças. Mas raramente são para adultos. A dualidade de um conto com narrativa dominada por inocência e singeleza com contextos e características violentas e sexuais parece um erro, mas este A Forma da Água prova que é possível.
Não passam quinze minutos de filme para que a protagonista Eliza (Sally Hawkins) não apenas apareça nua, como ela se masturba. Isso em uma cena que mostra a singeleza e inocência da rotina de uma personagem pura. Faxineira muda de um laboratório do governo dos Estados Unidos, ela descobre uma ligação incomum por uma criatura marinha (Doug Jones) capturada e levada para experimentos.
Inocências e ingenuidade não são exatamente sinônimos. Eliza é inocente na forma como não tem maldade e não busca fazer o mal a ninguém, porém, não é ingênua a ponto de não sentir desejo sexual e de satisfazê-lo. Para fazer com que o momento funcione, os roteiristas Vanessa Taylor e Guillermo del Toro fazem com que esses momentos sejam cronometrados por Eliza para que ela não estrague os ovos que são cozidos em outro cômodo.
Tudo na cena serve para isso. Desde os cortes rápidos e ritmados que fazem com que a rotina dela seja quase como um balé. O que é reforçado com a bela trilha com tons de valsa de Alexandre Desplat. Passa pelo sorriso contido de Hawkins, que esconde uma satisfação das pequenas coisas dos dias. Até os ângulos fechados que del Toro, também diretor do filme, usa para detalhar o cuidado de Eliza com as tarefas diárias.
Também ajuda uma fotografia que, somada à direção de arte, faz com que tons verdes azulados preencham quase todos os ambientes. As imagens são belas em quase todo o filme. Mas além disso, o verde é significativo. Todos os personagens, por mais bem humorados ou mostrados com singeleza, possuem uma melancolia latente. E o verde representa essa falta.
O amigo gay de Eliza, Giles (Richard Jenkins), se empanturra de tortas verdes e ruins para se aproximar de um possível interesse romântico. A melhor amiga e colega Zelda (Octavia Spencer), ri e zomba constantemente do marido, mas é óbvio que detesta o casamento. E ela trabalha em um ambiente em que todas as cerâmicas fazem com que o local seja verde.
Por outro lado, tons quentes aparecem pontualmente para revelar quando personagens estão felizes. O vilão Richard Strickland (Michael Shannon), deprimido pela situação de trabalho em que vive, encontra conforto em casa, onde as paredes são amarelas e ele tem controle total sobre a família. Enquanto Eliza passa a usar roupas vermelhas quando garante a intimidade com a criatura.
As motivações de Strickland, diga-se de passagem, são reveladas com isso. Enquanto busca controlar tanto a esposa que pede para ela fazer silêncio durante o sexo, o espectador compreende duas coisas. Como ele fica frustrado com o caos do laboratório e que ele sente algum tipo de atração pela mudez de Eliza.
Além disso, ele ganha muito com a típica intensidade de Shannon. O olhar fixo do ator esconde a intenções do personagem. Em certas cenas, ele parece que vai enlouquecer e machucar todo mundo, mas ele apenas sai calmamente. Em outras, quando parece quase distraído, fere e causa a destruição. É o que acontece quando um diretor sabe usar bem um ator.
Todos esses elementos servem para contar uma história de amor diferente, em que o tema central é a celebração da diversidade. Eliza é muda e descendente de latinos. A paixão dela é um homem peixe. A melhor amiga, negra. O melhor amigos, gay. Um dos ajudantes, um espião russo em plena guerra fria. E o vilão, um americano racista que acredita que Deus seja um homem branco.
A Forma da Água sofre apenas com o fato de ser um conto de fadas. A forma sutil com que aborda os temas, não permite que a produção seja profunda. Eliza ama a criatura e vice-versa. E é isso. Sem discussão ou compreensão além de que os dois gostam de estar juntos. Essa simplicidade dos temas também cria personagens clichês, como a negra que fala muito para reclamar e o gay afetado.
É um conto de fadas moderno e para adultos. Com direito a sangue, discussão sobre preconceito, nudez e sexo. Mas ainda, inocente na profundidade dos temas e na forma como aborda cada cena. Passa quase como uma história para crianças dormir, com doçura.
Esta e outras críticas também podem ser lidas no site Sete Cultural.