A Garota no Trem chegou com uma premissa curiosa, mas havia algo de estranho em todo o material promocional do filme. Tudo parecia focado demais em um mistério policial de suspense sobre personagens dúbios com visuais lisos e com estilo de tons cinzas e pastéis. Algo como um certo sucesso do David Fincher de dois anos atrás…
Tudo é incerto nas histórias de Rachel (Emily Blunt), Megan (Haley Bennett) e Anna (Rebecca Ferguson). A primeira é uma alcoólatra que viaja constantemente de trem diante do bairro onde vivia com o ex-marido Tom (Justin Theroux), agora casado com a terceira. Nesses passeios, ela passa a fantasiar com a vida aparentemente perfeita da segunda com o lindo esposo Scott (Luke Evans). Um mistério vai unir as três.
É claramente um suspense policial embasado em personagens sombrios e com atitudes questionáveis. Uma trai o marido, outra foi amante e a protagonista não tem controle das próprias ações. Tanto que é fácil acreditar que qualquer uma delas seja a criminosa. Lembra muito Garota Exemplar. Demais até.
Mas ser apenas semelhante com outra coisa não é suficiente para dizer que não há novidade ou qualidade como filme. O que realmente incomoda aqui são as pequenas escolhas de roteiro de Erin Cressida Wilson. A começar por dividir a história entre três personagens. A ideia por si só não é ruim, mas a forma como é feita. Principalmente porque apenas a parte de Rachel é que realmente leva a produção adiante. A de Megan é contada no passado, seis meses antes do mistério e a de Anna é tão irrelevante que ela mal aparece em cena.
Dividir a narrativa entre as três apenas deixa tudo confuso. Por outro lado, os dramas delas são muito interessantes. Especialmente com atrizes tão boas. Emily Blunt talvez entregue uma das melhores interpretações já feitas de uma pessoa bêbada. Ela o faz com pequenos e minuciosos desequilíbrios e rápidas olhadas desorientadas. É impressionante e até já despertou conversas sobre indicações a prêmios de melhor atriz. Talvez prematuro, mas compreensível.
As outras duas mantém o nível. Haley Bennett prende a atenção apenas no visual. É uma mulher extraordinariamente bonita fisicamente, e a beleza é parte fundamental de quem a personagem Megan é. Porque por baixo da superfície estonteante existe uma mulher complexa, com um trauma pesado e uma necessidade de sexo para se distanciar do próprio sofrimento. Rebecca Ferguson também é ótima como a esposa e mãe desesperada para manter a família que lhe traz culpa por sentir que a roubou de outra pessoa. É ainda melhor quando se leva em consideração que os outros papeis de Ferguson eram de mulheres fortes e autossuficientes. Demonstra capacidade de fazer personagens diferentes.
Com essas três ótimas atrizes, o filme explora bem temas como maternidade, alcoolismo, relacionamentos abusivos e outras questões que podem ser vistas como “femininas”, por mais que não sejam necessariamente só de mulheres. O texto para expressar isso busca um naturalismo melodramático. Principalmente porque as três têm problemas melodramáticos, mas não piegas com berros e gritos exagerados. As situações são comuns para muita gente. Pessoas em todos os lugares vivem as coisas demonstradas na trama.
O diretor Tate Taylor mimetiza o estilo de Fincher em Garota Exemplar. Filma cuidadosamente com planos profundos, usa direção de arte monocromática com estética de superfícies lisas. A diferença está nos planos. Para se focar nas interpretações, Taylor usa e abusa de closes que às vezes perdem os atores. A intenção é demonstrar como as personagens estão sem rumo, escondidas pelos cantos de um mundo que funciona sem elas.
É tudo muito bom, se não fosse a necessidade de se fazer um filme policial. Porque todas as tramas dramáticas ricas e bem conduzidas são ofuscadas por um mistério capenga, cuja conclusão é ilógica. Especialmente quando se descobre a característica que mais une as três. É óbvio, baseado em um roteiro que mente para o espectador quase de forma desrespeitosa e tem um típico antagonista que muda de personalidade quando se descobre que ele ou ela é vilão. Apesar disso, o clímax final tem um suspense muito bom, que deixa tenso e com medo pelos personagens “bonzinhos”.
Seria um grande drama, se não se esforçasse demais em ser outro filme. Ainda tem características excelentes. Os conflitos pessoais são ricos, bem escritos e conduzidos. As interpretações são extraordinárias. As discussões são interessantes e dão espaço para protagonismo de mulheres. É fácil ficar dividido. Ele tem muitas características ótimas e muitas ruins. Ainda é válido pelas pequenas coragens de ser diferente e ousado nos temas que discute.
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