Com uma carreira pontuada por títulos como Taxi Driver (1976) e O Aviador (The Aviator, 2004), Martin Scorsese se aventurou no universo infanto-juvenil ao dirigir A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011). O diretor, em entrevista, confessou ter feito referências à própria infância no longa, e disse sentir-se como o protagonista, um garoto muito influenciado pelo pai. No caso de Scorsese, uma herança paterna foi a paixão pelo cinema, reverenciado nesse filme.
Baseado em livro homônimo de Brian Selznick e ambientado na Paris dos anos 1930, esta ode ao cinema apresenta a história do solitário Hugo Cabret (Asa Butterfield), órfão cuja moradia é o relógio de uma estação de trem. Já então, percebe-se uma alusão aos primeiros passos da sétima arte: A Chegada do Trem na Estação (L’arrivée d’un train à la Ciotat, 1896), dos irmãos Lumière, foi um dos marcos do cinema recém-nascido. Dizem que o público, na época, assustou-se com a imagem do trem que se aproximava – cena que, por sinal, foi reproduzida por Scorsese no filme.
Sob certa ótica, é possível afirmar que o tempo é outra temática do longa. “O tempo é tudo, tudo” – exprime a máxima dita nos primeiros momentos, enquanto uma luminosa Paris é comparada ao formato de um grande relógio. Hugo vive em um local de trânsito e passagem. Ele não se sente em casa, perseguido por um mal-humorado inspetor e abandonado pelo tio beberrão, como se fosse uma peça sobressalente e deslocada nessa grande máquina que é o mundo. Dentro do relógio onde mora, o menino parece imune ao tempo, congelado nas lembranças tristes do falecido pai. Este, não por acaso, era relojoeiro, e transmitiu ao filho o dom de consertar objetos. Inicialmente, Hugo tem o papel de mero observador. Do relógio, no centro da estação, ele pode ver o cotidiano das milhares de pessoas que passam por ali todos os dias. Curiosamente, a tradução de relojoeiro no inglês é “watchmaker“, sendo que o verbo “to watch” significa também “assistir” ou “observar”.
George Méliès homenageado na produção pelo ator Ben Kingsley.
George Méliès (Ben Kingsley), produtor e cineasta nos primórdios da sétima arte, é o grande homenageado por Scorsese. Depois de ter vivido a era de ouro no início do século, o já idoso e rabugento Méliès vive a decadência pós-guerra como vendedor de berloques e artigos de ilusionismo na estação de trem. Assim como Hugo, parece não pertencer ao lugar, e o tempo já teve efeito sobre ele e sobre os filmes que havia realizado. Méliès não é imune ao tempo como Cabret, e sim refém dele e de suas lembranças. Golpeado pela primeira grande guerra e superado pelas novas tecnologias, foi rapidamente esquecido, e suas mais de 500 produções perdidas. A reviravolta em sua vida acontece quando ele conhece o órfão Hugo que, junto a Isabelle (Chloë Grace Moretz), obriga Méliès a lembrar do passado e encarar a passagem do tempo como um triunfo e não uma derrota. Dessa forma, o velho e o novo, o obsoleto e o moderno, George e Hugo se unem para encontrar um ponto de equilíbrio.
Em dado momento, Hugo e Isabelle, em uma referência metalinguística, assistem, dentro da sala de cinema, à cena de O Homem Mosca (Safety Last, 1923), em que Harold Lloyd se pendura nos ponteiros de um relógio, do lado de fora de um prédio. Quase no final do filme de Scorsese, Hugo se vê na mesma situação de Lloyd. Percebe-se que o menino, antes espectador do mundo exterior, separado pelas engrenagens do relógio, agora se vê livre do passado triste e está pronto para viver o futuro. Como Pinóquio, em busca de um propósito de vida, Cabret encontra uma família e percebe que nunca foi uma peça excedente.
Com doses equilibradas de humor e sensibilidade, A Invenção de Hugo Cabret é uma união do melhor cinema hollywoodiano com pitadas do cinema artístico, principalmente o francês – inclusive no formato com valores familiares embutidos, típicos do modelo americano, e que se mostram na necessidade de Hugo, que representa a figura da criança, possuir um lar e uma família, ainda que não tradicional. Embora seja voltado para o público infanto-juvenil, traz reflexões e questionamentos filosóficos, além do tour sobre a história do cinema, que só pode ser plenamente percebido por quem tem certa bagagem.