A condição da mulher na sociedade entra em foco no novo longa-metragem do brasileiro Karim Aïnouz. A Vida Invisível, indicado brasileiro ao Oscar, é “um filme sobre o passado que ecoa no presente”, como o próprio diretor descreveu em coletiva de imprensa em São Paulo, produzido em forma de melodrama.
Inserida inicialmente na década de 1950, a trama – escrita por Aïnouz em parceria com Murilo Hauser e Inés Bortagaray, com base no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha – acompanha duas irmãs, Guida (Julia Stockler) e a caçula Eurídice Gusmão (Carol Duarte). Filhas de imigrantes portugueses radicados no Rio de Janeiro, cresceram dentro de um modelo de vida patriarcal. Porém, as coisas mudam quando a mais velha parte para a Grécia para viver uma história de amor com um marinheiro. A partir daí, o pai, indignado com o acontecimento, impede que elas se vejam e tenham uma relação.
A história, ao mesmo tempo em que destaca a evolução das conquistas femininas na sociedade, mostra o quanto o homem daquela época ainda marca presença na contemporaneidade. E a fotografia com cores fortes constantemente reforça o quanto ela é atual, apesar de ocorrer no passado. Eurídice é forçada a viver com um companheiro tóxico, Antenor (Gregorio Duvivier), que frequentemente a força a ter relações sexuais e, ao mesmo tempo, é o tradicional “bom rapaz” e “pai de família” de classe média. Sobre o personagem, o ator destaca: “debaixo do homem comum, tem um animal selvagem”.
É um filme que destaca o que vai além das palavras, o invisível. Como Carol Duarte definiu, ele retrata uma violência muda – um sofrimento que Eurídice sente mas não externaliza em palavras. A personagem, por imposição da sociedade e das circunstâncias, abandona os próprios sonhos artísticos – com enorme vocação para tocar piano, o principal desejo que ela tem é ir estudar em um conservatório na Europa – e felicidade em função de uma vida familiar tradicional, sempre colocada em último plano.
Do outro lado, Guida rompe barreiras ao tentar se consolidar em uma vida oposta à esperada no ambiente em que vive. Ela mostra que é possível construir um conceito de família diferente da tradicional e que uma mulher pode trabalhar em ramos considerados masculinos. Sempre enfrentando grandes críticas negativas de terceiros e diversos obstáculos.
Enquanto acompanha os altos e baixos das vidas das irmãs, que não desistem de tentar se reencontrar, o público se envolve profundamente. Com cenas fortes, a montagem toca, dói, irrita, indigna. É uma miscelânea de sentimentos que levam a lágrimas e reflexões, principalmente das mulheres, que se identificam ou veem alguém que conhecem nas personagens. O que não anula o fato de o filme ser emocionante para qualquer pessoa com o mínimo de empatia dentro de si.
Esses sentimentos são construídos por meio de personagens carnais, sem medo de mostrar que o sexo, por exemplo, nem sempre é algo bonito e pode ser sinônimo de desconforto. A preparação de elenco de Nina Kopko – que merece aplausos, inclusive – resultou em personagens expressivos em cada movimento do corpo, que muda com o decorrer da trama e acontecimentos.
É uma produção sobre a mulher e, por isso, mostra diferentes pessoas que são oprimidas pelo mundo falocêntrico – seja a considerada transgressora, a esposa que se apaga em função do marido e até mesmo aquela que, por inserção nesse contexto, realmente acredita que tem um papel de submissão a ele e repassa essa crença para frente.
Além de o elenco entregar ótimos trabalhos, tanto de Duarte, Stockler e Duvivier quanto dos demais coadjuvantes, a parte técnica acerta em cheio com incríveis direção e roteiro, lindas fotografia e direção de arte, interessante montagem, comovente trilha sonora e figurino coerente, sempre colocando em pauta importantes temas. E, de bônus, mais ao fim do longa, Fernanda Montenegro faz uma memorável participação como Eurídice mais velha.
Após o sucesso de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, diversas pessoas se manifestaram nas redes sociais com queixas sobre ele não ter sido selecionado para representar o Brasil perante a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Todavia, essa percepção provavelmente vai mudar após assistir A Vida Invisível. É uma produção sensível e emocionante, com uma equipe muito bem escolhida, que reforça o quanto o cinema nacional tem fenomenais representantes em atuação, em todos os âmbitos cinematográficos, e deixa a reflexão de que é necessário abrir os olhos e enxergar cada mulher que tem vivido invisivelmente.