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O fantasma na casca é uma referência direta para a alma humana. A consciência, que pode ou não residir pura e unicamente no cérebro de alguém. Quando a tecnologia avança a tal nível que é capaz codificar a mente e mimetizar os organismos, onde termina o vivo e começa a máquina? Parecem pensamentos filosóficos demais, mas é disso que A Vigilante do Amanhã trata: as engrenagens que movem a individualidade e os limites físicos da mesma.
Agente especial da seção 9, uma divisão do governo japonês, a major Mira (Scarlett Johansson) é a primeira e única espécie de ciborgue cujo corpo é completamente artificial. A única coisa que possui do original é o cérebro. Durante uma investigação, ela e a equipe precisam impedir e capturar o terrorista Kuze (Michael Carmen Pitt), antes que ele mate um grupo de cientistas e executivos de uma empresa de robótica.
É um exemplo perfeito do subgênero cyberpunk, que ganhou fama pelo escritor William Gibson no livro Neuromancer. Futuro em que a tecnologia permite ultrapassar as barreiras dos limites do corpo humano, com prédios imensos, ambientes sujos e roupas sintéticas com muitos tons escuros e uso de sobretudo. E, é claro, questionamentos sobre realidade, individualidade e vários outros aspectos filosóficos.
Antes que haja confusão, é preciso dizer que este filme é uma adaptação do mangá Ghost in the Shell, escrito por Masamune Shirow de 1989 a 1991, e não do longa animado de 1995. Esse fato é importante porque a animação não é fiel ao original, apesar de ter semelhanças óbvias, uma vez que ambos são adaptados do mesmo material. Em especial representações visuais que se tornaram icônicas.
Os mais atentos vão perceber detalhes, como a cena de montagem da major, o momento em que ela se desnuda no topo de um prédio antes de se jogar do mesmo e ficar invisível durante a queda, ou a situação em que ela mergulha no fundo do mar para pensar sobre a existência. Se é uma tentativa de homenagear o filme anterior ou uma representação de cenas do quadrinho, o que é fascinante é o esforço técnico do diretor Rupert Sanders para criar imagens que enchem os olhos com composições belas, cheias de cores e com significados acerca da jornada da major.
É o resultado da mistura da fotografia que usa luzes duras e coloridas que se assemelham a neon, com a direção de arte de becos e cantos escuros, e com ideias interessantes para representar a tecnologia. Quando as coisas são vistas por meio de hologramas e realidades virtuais, elas se desfazem como se fossem líquidos com texturas de grãos em cubos, algo como areia que escorre. Gera soluções visuais divertidas de ver enquanto saem de cena na tela.
Mas o espetáculo visual que se origina das tecnologias não é a única qualidade do filme. Ele também têm significado para os questionamentos da trama. Em especial a noção de individualidade. Quando a mente pode ser hackeada a um nível em que é possível reprogramar memórias, como alguém sabe quem é de verdade?
Sanders usa os visuais para contar a história também. A dissolução dos hologramas espelham a fragilidade da memória, assim como enquadramentos revelam as emoções da major. Em certo ponto, a câmera se coloca sobre o ombro de um personagem com quem ela interage. A forma como o rosto dela parece imergir no dele demonstra como os dois estão próximos mentalmente.
O roteiro de Jamie Moss e William Wheeler comete apenas o pecado de explicitar tanto as perguntas quanto as respostas. Antes mesmo da major questionar se é humana ou uma máquina, o colega Batou (Pilou Asbæk) fala com raiva: “Não é o que você lembra, mas o que você faz”. Ainda assim, apenas por se permitir questionar, A Vigilante do Amanhã já faz mais que muitos filmes de ação com toneladas de computação gráfica.
Também há um desvio no tratamento com cinco minutos para o fim da projeção. As soluções finais do roteiro parecem mais preocupadas em fazer com que a major se torne uma personagem heroica que em tratar dos temas que o filme inteiro discutiu anteriormente. Além disso, é recheado de frases de efeito que, mesmo divertidíssimas, destoam do tom da produção.
Johansson está bem no papel da major, mas cria um caminhar para a personagem que nunca parece lógico. A major se move constantemente como se estivesse em uma marcha militar robótica, o que não condiz com a personagem, que é parte biológica, parte mecânica. Quem realmente se destaca é Michael Carmen Pitt, como Kuze. O ator usa dos trejeitos esquisitos para criar um ciborgue cheio de tiques e falhas. É apenas magnético de se observar.
Entre visuais ricos, profundidade de trama e uma narrativa bem feita, A Vigilante do Amanhã se revela um cyberpunk que resgata bem a estética e o estilo do subgênero, que às vezes parece ter sido esquecido em vão. Apesar de cometer erros bobos de roteiro, funciona muitíssimo bem.