Filmes de investigação de crimes se tornaram raros. Em um universo popular focado em séries de TV com tramas paralelas complexas e recheadas com conflitos de personagens, histórias voltadas apenas para o crime principal perdem a atenção. Justamente por isso esta revisão do livro clássico da Agatha Christie soa tão fresca, mesmo que seja também um remake.
A trama é famosa. O detetive belga Hercule Poirot (Kenneth Branagh) embarca no expresso do oriente em Istambul, onde tira férias, para resolver um caso em Londres. No caminho, um deslizamento de neve impede o trem de seguir viagem. Enquanto esperam a equipe de resgate limpar os trilhos, os passageiros descobrem que um deles foi assassinado. Sobra para o detetive determinar o culpado antes que a polícia prenda a pessoa errada.
Tem todos os clichês obrigatórios do gênero. Assassinato em um local fechado entre estranhos. Detetive com características peculiares que o fazem ser divertido. Entrevistas individuais com os suspeitos, todos com motivos para matar a vítima. E a revelação com todo o elenco reunido. Mas existe um motivo para Assassinato no Expresso do Oriente ter se tornado a obra mais popular protagonizada pelo investigador Poirot, um dos mais famosos da literatura.
Porque Christie resolveu aproveitar o livro para criar um questionamento moral em cima do mistério da vez. Para refletir isso na tela, o diretor Kenneth Branagh e o roteirista Michael Green escolhem fazer com que o conflito seja também o do detetive. Ele é apresentado como uma ferramenta rigorosa de justiça que enuncia claramente: “Existe o certo e o errado. Não tem nada no meio.”
Esse maniqueísmo se revela importante para a mensagem que Green e Branagh querem passar quando a investigação traz à tona crimes passados e as consequências da maldade. Especialmente devido à participação do personagem Edward Ratchett (Johnny Depp), que cria uma balança nessa visão de mundo de Poirot e levanta a observação de que um assassinato destrói as vidas daqueles ligados às vítimas.
Tudo muito bem costurado com a estrutura padrão do gênero. Cada pista aponta para a solução final, mas esta nunca é clara. É um trunfo mais da autora do que dos realizadores, uma vez que o filme tem o mesmo final do livro. A cada pista nova, mais perto o espectador e o detetive ficam de descobrir o enigma. Ainda assim, a dúvida e o suspense aumentam à medida em que a trama se complica.
E a revelação fica ainda mais satisfatória quando o espectador reflete sobre cada reviravolta e compreende como ela era, de fato uma ligação importante para a solução. Ainda deixa a vontade de rever a produção para reencontrar as pistas com o conhecimento do mistério, mesmo que o suspense já não tenha mais o mesmo peso.
Isso funciona também por conta de Branagh ser tanto o diretor quanto o protagonista. Com grande domínio técnico, ele faz boas produções com estilo clássico. E as histórias de Christie evocam estilo clássico. Existe algo de glamoroso e de charmoso nas tramas com estranhos em locais típicos de aristocracia fechados e um mistério envolvente.
Com destaque para as cenas em que ele cria uma perspectiva subjetiva do detetive com planos sem cortes que o acompanham enquanto ele caminha entre os suspeitos ou anda por uma estação de trem. A câmera e a edição de som dão destaque na cena para que o espectador veja e perceba o que Poirot percebe nos locais. Apesar de eficiente, porém, ele não é inventivo ou tenta ser inovador. Apenas correto.
Como ator, Branagh também sabe expressar o incômodo constante de um homem que nota detalhes fora de lugar justamente por ter transtorno obsessivo compulsivo (TOC). É o que dá para o personagem a habilidade de desvendar crimes, e também o que o consume por não se sentir à vontade em nenhum lugar. E como este assassinato em questão o provoca moralmente, ele fica cada vez mais perturbado.
Também merecem destaque Michelle Pfeiffer, com um difícil papel de uma mulher que é ao mesmo tempo tempo imponente e afetada pelo que ocorre ao redor; Daisy Ridley, como a passageira mais inteligente que esconde nos olhares a compreensão de coisas não ditas; Leslie Odom Jr., como um médico benevolente, mas também capaz de cometer violências; e o Derek Jacobi, como um mordomo com uma tragédia pessoal escondida entre ironias e tremidas de lábio.
O resultado é um filme que funciona especialmente na primeira assistida por causa do suspense de não saber quem é o assassino. Porém, ele tem o peso extra de uma questionamento que ressoa mesmo depois que a sessão termina. Deu ainda a vontade de ler o livro para ver como a adaptação alterou pontos da trama.