Com alguma frequência me pego desamparado quando descubro artes conceituais de filmes com belos visuais. A imagem filmada em cenário com atores nunca se equipara ao desenho de produção original. O que ocorre nesta continuação desnecessária (e nem por isso ruim), é justamente o contrário. É impossível olhar para imagens como a acima e pensar que não se trata de algo próximo do design original.
É apenas uma das características que se aproximam da perfeição técnica em Blade Runner 2049. Ironicamente, é na história do blade runner K (Ryan Gosling), que o filme tem mais problemas. A grandiosidade e a pretensão em todos os aspectos são adequados, menos na necessidade de fazer com qua a jornada do policial que caça replicantes (humanos sintéticos) tenha um escopo tão extraordinário.
Enquanto completa um trabalho de matar um replicante fugitivo, K descobre o corpo de uma mulher sintética que teve um filho. Preocupada com as repercussões da informação, a chefe do blade runner, a tenente Joshi (Robin Wright) o manda destruir todas as evidências e matar a criança, que agora deve ser adulta. Na investigação, K descobre mais sobre si e questiona as próprias memórias e quem ele é.
Parece uma trama de investigação policial simples, tal qual à do primeiro Blade Runner, mas o desenvolver da história vai revelar conspirações e revoluções que não condizem com o que é grande parte da graça do original: um filme noir que trata mais dos questionamentos dos personagens, do que sobre o enredo.
Aqui, é o contrário. O excelente desenvolvimento do personagem de Gosling, que o interpreta com o talento habitual de expressar emoções sutilmente pelo olhar, é abandonado com cerca de duas horas de projeção para que o filme revele sobre o que trata de verdade. Então, a filosofia e a profundidade são deixadas de lado para que a história se torne grandiosa pelos últimos 40 minutos. Sim, são duas horas e quarenta de exibição. E não seriam sentidas se a parte final não fosse sobre outra coisa que o protagonista.
Para criar a jornada de K, os roteiristas Michael Green e Hampton Fancher (roteirista também do filme de 1982) não contam, mas mostram. Não é preciso que alguém diga que o personagem é solitário, basta ver como ele é tratado por todas as pessoas. Até a direção de arte fortalece isso ao mostrar pichações na porta da casa dele. Então, é revelada a namorada dele, uma inteligência artificial chamada Joi (Ana de Armas, em uma interpretação extraordinária), a única fonte de carinho e compreensão do policial.
Simples e bem feito. Isso é enriquecido com momentos lentos e com poucos diálogos, como a cena em que K está prestes a ter um momento íntimo com Joi e é lembrado que ela é virtual quando o programa dela é pausado por uma mensagem. A cena, longa, é contada por meio do visual. Especialmente pela direção de fotografia de Roger Deakins, que a coloca no escuro enquanto ainda está temerosa sobre ir até a chuva, e depois a irradia de luz quando ela se sente feliz pelo contato com o ambiente externo.
Deakins, diga-se de passagem, parece decidido a se superar em cada enquadramento. Além da beleza dos planos com simetria de estruturas artificiais e luzes coloridas, ele e o designer de produção Dennis Gassner fazem com que todo ambiente da história sejam preenchidos por apenas uma cor.
O cinza azulado domina na cidade estéril, enquanto o amarelo preenche a empresa do vilão Niander Wallace (Jared Leto), que se considera um deus para os replicantes. A cor amarela, não à toa, é normalmente ligada a conceitos de divindade. Da mesma forma, o branco em uma oficina de memórias representa a esperança, assim como o vermelho é sinal de perigo no deserto radioativo de Las Vegas.
Tanta beleza visual é complementada pelo trabalho de Benjamin Wallfisch junto com o mentor Hans Zimmer na composição musical. Os dois mimetizam a obra sonora de Vangelis no filme original. Sintetizadores e ruídos que parecem saídos de ferramentas futuristas dão o tom de ficção científica da produção, mas usados com melodias lentas se tornam contemplativos. O que é adequado para a proposta filosófica das primeiras duas horas.
Entre os questionamentos, ainda se mantém as dúvidas sobre a validade de vida criada organicamente. Mas outros tópicos são acrescentados, como a realidade por trás de uma memória ou o sentimento de um software programado para sentir.
Blade Runner 2049 valida a descrição audiovisual para o cinema. É uma experiência sensorial da arte levada ao máximo. Um espetáculo visual e sonoro realizado com primazia. E o melhor, com conteúdo rico e profundo. Peca na pretensão narrativa, especialmente nos últimos quarenta minutos, mas ainda é algo a ser contemplado em uma sala de cinema.