Sabe quando você sai do cinema depois de um filme e não consegue concluir? Não há conclusão sobre os temas do que foi visto, sobre a história em si e sobre a própria opinião acerca da produção. Este Corpo e Alma é um desses casos raros em que, por mais que seja difícil responder a essas dúvidas, a obra fica na cabeça do espectador por muito tempo depois que termina.
Tudo é confuso quando Endre (Géza Morcsányi), um diretor financeiro de um matadouro de gado, se vê chocado com a substituição da inspetora de qualidade por Mária (Alexandra Borbély), uma mulher extremamente reservada e rígida que muda a estrutura do lugar. O choque fica ainda maior quando eles descobrem que têm dividido o mesmo sonho toda noite há alguns meses.
Surge uma história de amor, de auto descoberta, de análise de uma pessoa que vive com uma condição mental, de crítica, de metafísica. Na verdade, Corpo e Alma pode ser lido como qualquer uma dessas coisas, todas elas e até nenhuma delas.
Em grande parte porque Mária tem memória eidética, que resulta de algum tipo de condição mental semelhante ao autismo. Ela lembra de tudo o que viveu e consegue analisar todo tipo de comportamento das pessoas por meio de observação de reações corporais. Sabe que alguém ficou irritado pela dilatação das pupilas ou pela forma como a pessoa deu um passo para frente ou para trás.
Mas ela não é capaz de socializar por ter dificuldade em demonstrar emoções. Em contraste, Endre tem facilidade em conversar e até em manipular as pessoas socialmente, mas tem desinteresse. Os dois têm habilidades diferentes e opostas para lidar com os outros, mas são iguais ao se afastarem. O que também é o que faz com que o romance deles seja crível, uma vez que eles são os únicos capazes de compreender a solidão um do outro.
Para construir esse conceito, todas as escolhas da diretora e roteirista Ildikó Enyedi servem de alegoria. Desde a fábrica de carnes, onde ela não tem medo de criar algumas filmagens chocantes da morte dos animais, até as escolhas técnicas.
A mesma frieza de Mária e Endre é usada pelos funcionários que precisam matar vários animais diariamente de forma sangrenta. Da mesma forma, Enyedi filma apenas com a câmera estática em ambientes tomados por cenários e vestimentas de tons frios de azul, verde e cinza. E a iluminação simula lâmpadas incandescentes, o que diminui a tonalidade dessas cores.
Ao mesmo tempo, Endre mora em uma área com mais iluminação colorida, apesar de ser um ambiente mais escuro. Enquanto ela vive em um apartamento com móveis organizados, mas iluminado em cada centímetro. Quanto mais eles se aproximam, mais os dois estilos se misturam. E isso sem perder a frieza da ambientação.
Mesmo assim, existe uma humanidade por baixo dessas camadas. E talvez seja essa a beleza dos temas do filme. Esses matadores de gado ainda são humanos com sentimentos. Por trás daquelas carnes avaliadas pelo peso do músculo ou pela quantidade de gordura, houve um animal inofensivo e assustado antes de morrer. E, escondido naquelas pessoas distantes e calculistas, há medos e desejos comuns a todos.
Porém, há coisas tão estranhas como os sonhos do casal. Assim como tramas paralelas confusas, como um certo crime que ocorre na fábrica. É uma quase metafísica que pode tanto ser lida como um acréscimo nessa leitura desse relacionamento, quanto algo a mais. Difícil, duro de ver (as cenas do matadouro não são para quem tem estômago fraco) e, acima de tudo, rico. Vale assistir para discutir e se pegar pensando sobre horas depois.