Quando o desenvolvedor de videogames David Cage anuncia um jogo novo, é difícil não prestar atenção. Com o uso das tecnologias mais avançadas, ele sempre tenta avançar as formas de narrativa da arte ao misturar com outra mídia: o cinema. A tentativa da vez é este Detroit: Become Human, o grande lançamento da Sony para Playstation 4 de maio.
O jogador controla os androides Connor (Bryan Dechart), Markus (Jesse Williams) e Kara (Valorie Curry). O primeiro é o protótipo mais avançado criado para auxiliar a polícia nas investigações sobre por que os robôs têm criado o “defeito” de sentir. O segundo é largado para ser destruído após uma vida de privilégios e passa a liderar uma revolução. E a última salva uma criança de um pai violento e precisa fugir para salvar a garota.
Cada um passa por uma jornada pessoal que demonstra para o jogador um viés diferente da mesma história, a revolução para que os androides tenham liberdade. E Cage usa e abusa de contextos históricos relacionados com esse tipo de luta pessoal para fazer o que é, na verdade, um jogo sobre lutas por direitors. Ou como algumas pessoas gostam de zombar e criticar ao mesmo tempo quando dizem: “crítica social foda”.
Há quem diga que Cage é o Goddard dos videogames. Ele não tem culpa disso, mas certamente é culpado por acreditar. Figura pública orgulhosa e desdenhosa, com um histórico de preconceito dentro da empresa que comanda, ele está mais para um D.W. Griffith do que para o “mestre” francês.
Em Detroit, ele fez um trabalho extenso de roteiro para que as múltiplas escolhas do jogador realmente afetem o final da história. É muito improvável que uma pessoa tenha uma jornada exatamente igual à de outra através das cerca de 12 horas para zerar o game. Segundo os desenvolvedores, certamente há um número finito de finais, mas é tão alto que nem eles sabem quantos são.
Assim como Griffith nos primórdios do cinema revolucionou em termos de narrativa, Cage fez algo novo que era pedido e visado há pelo menos dez anos nos videogames. Mas como o diretor, ele não consegue esconder os comportamentos racistas, homofóbicos e sexistas da vida pessoal. O que leva a outra comparação: os dois fizeram obras sobre intolerância.
Normalmente, não se deve usar a vida pessoal de um artista para analisar a obra isolada dele. Porém, no caso de Cage, é possível ver uma influência direta nas escolhas dele como roteirista, desenvolvedor e diretor de jogos de videogame. Isso porque o ego inflado dele se reflete nas repetições dos mesmos erros. Assim como em Heavy Rain e Beyond: Two Souls, ele mantém os diálogos ruins e os furos de roteiro em Detroit.
É impossível não se incomodar com personagens clichês, como o pai que espanca a filha e é o único no jogo sujo e gordo. Ou com conversas bizarras, como o artista que demonstra carinho pelo androide concentrado em pintar um quadro.
Pior ainda é uma cena em que Connor persegue Kara (isso pode não acontecer se o jogador não fizer certas escolhas antes) e esbarra com policiais que sabem como ela se parece e que deve ser capturada, mas não fazem nada. E tudo isso contribui para cenas melodramáticas que não são coerentes e soam bregas. As piores envolvem a relação de Kara com a menina Alice, que não tem personalidade alguma. Portanto, não se sente química da suposta relação de mãe e filha que deveria surgir ali.
Enquanto Cage não aprender a lidar com o ego e melhorar com as críticas que recebe, ele continuará a cometer os mesmos erros. Por outro lado, Detroit tem o melhor roteiro da carreira dele. Pela primeira vez, ele conta uma história em que o começo, o meio e o fim são condizentes. Assim, a jornada pessoal se torna ainda mais poderosa. E ele ainda tem vários dos acertos usuais aprimorados.
Apesar de, como diretor, fazer cenas com muitos cortes mesmo nos momentos mais calmos e íntimos, ele decidiu contratar um diretor de fotografia, o que fortalece a narrativa. Para Markus, os enquadramentos são baixos, o que tornam o protagonista maior e mais heróico. Kara recebe luzes com cores mais quentes para reforçar o emocional da relação dela com Alice. Já Connor tem enquadramentos equilibrados com luzes duras e frias para refletir o quanto ele é metódico.
As composições musicais dialogam com essas escolhas. A trilha sonora de Markus é feita com orquestra para dar o tom de grandiosidade. A de Connor tem sons de materiais metálicos na percussão. E a de Kara é minimalista com instrumentos de corda para dar uma sensação mais intimista e sentimental.
Os três atores conduzem momentos fortes destinados a entrar para a memória do jogador. Markus em especial, tem duas cenas inesquecíveis. A primeira quando se conserta e ressurge na chuva como se o personagem renascesse e a segunda quando lidera uma manifestação nas ruas. Especialmente em tempos de polarização política, a sensação da cena é ainda mais forte.
As mecânicas se mantêm com o padrão de jogos de apontar e clicar, em que o personagem deve andar pelo cenário, analisar as situações e conseguir certos objetivos para passar por certos obstáculos. Mas como os três protagonistas podem morrer a qualquer momento, falhar tem custo na história. Quando se volta para a ação é que o jogo se torna desatualizado ao utilizar mecânica de quicktime, em que o jogador tem que apertar botões rapidamente quando estes aparecem na tela para que o personagem não falhe.
No fim, Detroit é uma experiência pessoal com alguns problemas que vão retirar o jogador aqui e ali. Mas, no geral, passar por alguns momentos maravilhosos é recompensador. Especialmente no enredo de Markus com uma fotografia linda e uma possível relação romântica que convence, e no de Connor, com uma mecânica de investigação envolvente.
As reflexões sociais até são interessantes, mas não se aprofundam em questões que seriam mais fortes além da dúvida sobre respeitar a individualidade e liberdade alheia. As respostas para essas perguntas já deveriam ser óbvias. Infelizmente, a temática ainda é necessária.