Desde o primeiro trailer desta releitura dos livros infantis, Dolittle, já parecia ter algo errado. Bastam poucas conversas para ver como a memória do médico que conversa com animais está enraizada nas comédias lideradas pelo Eddie Murphy no fim da década de 1990 e início dos anos 2000. A verdade é que quase ninguém sabe dos livros antigos para os quais a nova versão tenta ser mais fiel.
Com uma mistura de tramas de vários deles, o doutor Dolittle (Robert Downey Jr.) precisa viajar atrás da árvore do Éden para salvar a rainha da Inglaterra de um envenenamento. Ele leva uma trupe de animais com a qual sempre se aventura e Tommy Stubbins (Harry Collett) garoto apaixonado por bichinhos e que quer aprender a falar com eles. No caminho, os homens que querem a queda da monarca iniciam uma perseguição para impedir os heróis.
Ao tentar ser extremamente fiel aos livros originais, o filme escrito e dirigido por Stephen Gaghan assume abertamente a estética infantil. O interesse é criar aquela sensação de magia que impressiona as crianças mais novas. E a magia se encontra quase totalmente em Dolittle e a capacidade dele de conversar com os animais, mas o mundo construído também carrega muita coisa mágica.
E talvez acerte em cheio com o público alvo. Especialmente porque essa mágica tem uma coisa especial. A habilidade de Dolittle permite a ele um encantamento que pode ser encontrado com facilidade na vida real: o convívio com carinho, gentileza e respeito entre seres vivos. Não é apenas porque pássaros levantam os casacos para ele colocar a roupa, mas é porque ele não culpa nem responsabiliza o gorila com ansiedade quando este o deixa cair em um momento de medo extremo.
Pelo contrário, Downey Jr., mesmo depois de quase morrer, se apieda do amigo e diz que não é errado sentir a emoção. É quase um manual de boas relações para crianças até cinco anos de idade, mas as dicas são bonitas e realmente valiosas. E todo o humor é voltado também para essa audiência. O grande clímax do filme com um dragão é resolvido com mais uma dessas lições de gentileza, mas também com uma piada longa, grosseira e elaborada sobre peido. Daquela pra criancinha rir mesmo.
Todo o elenco abraça essa inocência do texto. Até o Michael Sheen, que interpreta normalmente vilões e personagens céticos, faz do vilão doutor Müdfly um bobão que deve gerar algumas risadas nas crianças quando se dá mal. E com atores do calibre do elenco principal, é de se esperar grandes performances. Mas Gaghan não sabe dirigi-los nos momentos com mais efeitos especiais.
Em um filme com tantos personagens digitais em cena, é comum que existam duas linhas de produção separadas: a de animação, e a de filmagem com os atores. Fazer com que a interação pareça natural entre os dois é difícil e pode cair no artificial. É justamente o que acontece aqui. Em várias cenas, parece que Downey Jr. está atuando para si mesmo sem se importar com os animais que deveriam dialogar com ele. No entanto, quando ele está com o elenco humano, essa interação funciona bem.
Por outro lado, a construção do ator para o Dolittle é estranha. Como o personagem é britânico, o sotaque é acertado em cheio. E não é problema para o protagonista, ele já fez mais de uma versão do Sherlock Holmes. O que incomoda é uma rouquidão que ele acrescentou à voz do médico. Ela soa superficial e, em diversos momentos, o som nem parece sair da boca dele. E não é erro de mixagem de som, porque os outros atores falam sem que essa sensação também aconteça.
Ao contrário do padrão de filmes infantis dos últimos trinta anos, Dolittle quer agradar apenas as crianças, e não os pais que as acompanham no cinema. Para um adulto, a sessão pode ser enfadonha, assim como as piadinhas aborrecidas. O momento do peido no final é constrangedor de ingênuo. Mas as lições são válidas e, em alguns momentos, o encantamento funciona até para os mais velhos.