Um dos grandes expoentes do que ficou cultuado no Brasil como anime, Ghost in the Shell (O nome inglês ficou mais popular por aqui que o brasileiro) chegou por aqui junto com outros clássicos, como Akira e o sucesso ocidental da obra do diretor japonês Hayao Miyasaki. Isso sem contar com a fama na TV de coisas como Cavaleiros do Zodíaco e Dragonball.
A noção que imperava com base nessas importações é que tudo que era animado do Japão era violento e explícito, além de recheado de filosofia bombardeada no espectador em diálogos acelerados e difíceis de acompanhar.
É o que acontece na história da ciborgue major Motoko (Atsuko Tanaka), que filosofa continuamente sobre a própria condição de vida e alma quando única parte do corpo que é natural é o cérebro ao mesmo tempo em que busca um hacker desconhecido que cria um caos diplomático no Japão.
Os questionamentos em uma trama futurista tão enraizada em tecnologias prováveis reforça claramente o estilo e estética cyberpunk de Ghost in the Shell, criado pelo novelista William Gibson e tornado famoso pelo livro Neuromancer. De fato, é possível ver até referências diretas da obra literária no visual e no roteiro do filme.
Adaptado do mangá do autor Masamune Shirow por Kazunori Itô, o texto resume a ação a cenas curtas e objetivas, mas com muita violência. O destaque aqui não é fazer um filme movimentado e divertido, mas algo mais introspectivo. É por isso que Motoko passa mais da metade da produção em diálogos sobre si mesma que em cenas de ação.
A trama se desenvolve em diálogos difíceis de entender porque as palavras são complicadas, os contextos não são explicados e a direção da interpretação das vozes é tomada de indiferença e velocidade. Na abertura, Motoko descobre que um grupo de diplomatas pretende auxiliar na fuga de um criminoso do Japão. Parece simples, mas as falas deles envolvem umas tais seções seis e nove. Como esse cara é importante para um certo grupo em tal lugar e aquele outro é controlado por um tal de puppet master.
Então ela age rapidamente, pessoas morrem e não deu para entender nada. Ainda mais com as imagens exuberantes que tomam a tela e distraem da história. Especialmente porque esta é a famosa cena em que Motoko se desnuda no topo de um prédio e salta enquanto fica invisível. Entre as imagens impressionantes, a tecnologia futurista que chama a atenção e nunca é explicada e as falas complexas, é fácil ficar perdido.
Mas entra uma força do texto. À medida em que os eventos ocorrem, eles ficam compreensíveis sem precisar explicar. Não é preciso que algum personagem diga que Motoko consegue dialogar com os colegas via wi-fi uma vez que todos tem partes eletrônicas na cabeça. Basta ver para compreender. Da mesma forma que as seções seis e nove eventualmente se tornam claras para o espectador como parte do governo japonês.
O outro ponto alto é, talvez, o verdadeiro motivo para que esse filme seja tão adorado. É quando Mokoto está introspectiva e se questiona se ela é humana. Se a alma dela resiste porque o cérebro ainda é o órgão com o qual ela nasceu. É muito interessante e profundo, mas seria vazio se não fosse a razão para todos os detalhes do roteiro, com muitas camadas.
Em certo ponto, um robô aparece com expressões e detalhes físicos idênticos aos de Mokoto. É um espelho óbvio para os questionamentos dela, mas, com o tempo, é revelado que ele guarda uma consciência no disco rígido. Se é possível que uma humana seja apenas uma consciência em uma máquina, então uma máquina com inteligência artificial pode ser um humano? As analogias se desenvolvem disso.
Porém, Ghost in the Shell não é apenas flores. Claramente embasado em técnicas de animes, com planos longos sem animação além do movimento de câmera, ele usa de recursos visuais minimalistas para economizar da produção de animação, como os seriados animados japoneses fazem (e como longos animados do Miyazaki ou Akira não fazem). Para a TV tem algum sentido, para o cinema parece preguiçoso.
No entanto, as sequências mais elaboradas possuem animações a mão extremamente detalhadas. A abertura icônica com a música Making of Cyborg do compositor Kenji Kawai é tão rica em movimentos que enche os olhos. Especialmente de quem é fã de animação e consegue ver o esforço para aquele momento.
Outro incômodo da produção é a representação feminina. Mokoto é uma ciborgue estonteante. Na verdade, ela é quase uma boneca da Barbie de tão perfeito que é o corpo dela. E o filme não deixa passar. Ela frequentemente ficará nua e os seios serão explorados ao extremo. Existe uma razão para a nudez, mas só dela e de mais ninguém. Esse problema vai para a história também, porque Mokoto é uma mulher para que, até o fim do filme, ela seja “escolhida” para “engravidar”.
Entre propostas interessantíssimas, uma mitologia de ficção científica muito envolvente, visuais estonteantes e um roteiro de estrutura inteligente, existem defeitos que incomodam muito, mas não ofuscam as muitas qualidades do desenho clássico. Não é à toa que ele foi tão influente para a estética do fim dos anos 1990 e início dos 2000.