Apesar das peculiares cores berrantes, é o tom sóbrio e seco que predomina no novo drama de Pedro Almodóvar. No acender das luzes, depois da projeção de Julieta, vigésimo filme do cineasta espanhol, o espectador sente a degeneração psicológica imposta pelas lacunas existenciais acumuladas ao longo de uma trajetória sofrida e marcada por perdas.
Almodóvar entrega a história da personagem título em dois momentos da vida: na juventude e na meia idade. Destaque para o bom trabalho das atrizes Adriana Ugarte e Emma Suárez. O processo de construir a mesma mulher em momentos cronológicos diferentes é desafiador e exigiu uma profunda imersão emocional na alma da personagem.
Após um encontro acidental com uma amiga nas ruas de Madri, Julieta volta a perseguir um passado que estava soterrado: a busca por Antía, sua única filha, com quem não tem contato há mais de 12 anos.
Menos verborrágica que outras protagonistas comumente associadas ao diretor, sua odisseia percorre o território do luto, da culpa e do abandono. Julieta é vulnerável. Tornou-se calada e circunspecta ao longo dos anos. São muitas palavras não ditas e emoções reprimidas. Da relação caudalosa com o pescador Xoan (Daniel Grao) à crise que se instaurou entre mãe e filha anos mais tarde. De comportamentos distintos, há mistérios nas fases de transformação das personagens após o trágico episódio que conduz o longa-metragem. Os laços maternais ora frouxos ora apertados instigam a reflexão sobre as relações humanas.
Os espaços geográficos e temporais são partes substanciais do filme. Lugares, encontros e desencontros, passado e presente. Cada situação tem algo a dizer. Até os objetos balbuciam. Os bolos de aniversário nunca tiveram um gosto tão amargo.
O roteiro e direção demonstram o domínio do que têm a dizer, tanto pela estética quanto pela narrativa. Almodóvar incorpora o mistério à sua habilidade de permear o universo feminino com maestria.
São muitas informações e referências. As cenas dentro do trem fazem lembrar de Pacto Sinistro (1951) do mestre do suspense Alfred Hitchcock. Outro destaque vai para a atuação de Rossy de Palma, uma empregada enxerida e bem sinistra.
A ambientação e o figurino requintados e elegantes são outro acerto. A Julieta dos anos 1980 com características típicas da época – especialmente cabelo e roupas – se transfigura em uma mulher austera e desesperançosa nos dias atuais.
A trama foi baseada nos contos do livro “Fugitiva” da escritora canadense Alice Munro, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2013. Julieta é um filme distintivo na carreira de Almodóvar. O cineasta esquiva-se das excentricidades usuais e de personagens tresloucados como Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), Ata-Me (1990) e Kika (1993) e constrói um drama mais convencional, mas que resultou em um primoroso trabalho.