Um dos textos dos quais me orgulho desde que comecei a dedicar grande parte do meu tempo e de meus esforços a escrever sobre filmes é um resumo de Laranja Mecânica em pouco mais de 600 palavras. No texto eu resumo o filme à violência contida nele. Mas não ao grafismo da violência ou ao estilo da mesma. Muito pelo contrário, comparei a violência física com a violência pessoal do filme de Kubrick.
Alex (McDowell) é um jovem violento e líder de uma gangue de delinquentes em um futuro não determinado. Um dia ele vai longe demais na realização de seus passatempos criminosos e vai preso. Porém, dentro do confinamento, Alex descobre uma forma institucionalizada de sair de lá mais cedo.
A história é famosa. Depois de muitos problemas na adaptação do livro homônimo para um roteiro, Kubrick desistiu do texto e filmou o livro tal qual ele estava escrito. O que faz com que Laranja Mecânica seja uma das adaptações mais fiéis ao material original. A ironia é que Kubrick era dono de uma versão americana do livro. Versão que não contava com o capítulo final. Ou seja, um dos filmes mais fieis simplesmente não tem o final do livro.
Como todo grande fã de cinema, me recuso a ir atrás do final verdadeiro da jornada de Alex. Imagino que o final seja tão brilhante quanto o todo, mas Kubrick fez do penúltimo capítulo um ponto de exclamação pungente em toda a discussão criada. Mais poderoso ainda porque o filme fecha com um ato horroroso, mas recebido quase com empolgação do espectador, feliz mais com o significado do que com a ação em si.
Alex e seus amigos saem todas as noites para espancar mendigos, estuprar mulheres de alta classe e participar de brigas contra outros grupos. Por conta da rotina, ele não vai para a escola (nesta parte da trama, o personagem tem 15 anos) e se sustenta com o dinheiro roubado, apesar de afirmar para os pais que o dinheiro vem de pequenos trabalhos que pega durante as madrugadas. Sua vida é feita de violência, sexo e futilidade. Durante a parte em que explicita isso, Kubrick faz com que seja um retrato social. Não apenas de jovens criminosos, mas de todos os grupos que os cercam, inclusive os adultos que os julgam com tanto vigor. Alex claramente sofre abuso de um tutor indicado pelo estado, é ignorado pelos pais e vive em um mundo cuja violência e o sexo são banalizados.
Violência estilizada satiriza o excessos cada vez mais comuns.
Tanto o é que, quando consegue o interesse de duas jovens, Alex não vê graça no sexo consensual. Representado em uma sequência acelerada na qual ele passa muito tempo com as duas sem penetração alguma. O prazer envolve muito mais riscos. Da mesma forma, a violência é uma coisa tão comum que coisas pesadas e fortes não são o bastante a menos que o próprio Alex seja o agente por trás dos golpes em pessoas inocentes. Daí Kubrick coloca trilha clássica numa sequência de luta ou o protagonista entoando o tema de Cantando na Chuva enquanto desnuda uma mulher pouco antes de estuprá-la diante do marido rendido.
Mas nada disso é desculpa para o que ele vem a passar mais tarde, depois de preso. O aprisionamento não é necessariamente ruim, mas o tratamento para “curar” Alex sim. Surge então a grande discussão do filme. O que fazer com casos “irrecuperáveis” como Alex? O mal que fazem justificam fazer algum tipo de retaliação contra eles? Se for possível remover os impulsos criminosos, é ético fazê-lo? As respostas são complicadas. O filme demonstra que buscar essas soluções contra o crime pode ser um crime ainda pior que os crimes originais. Alex agredia as pessoas em níveis terríveis, mas a agressão que sofreu da sociedade praticamente o deixa incapaz de levar uma vida. O mal que ele pratica é físico, o que recebe o desmembra de parte de sua personalidade.
Cura contra o crime. Desumanização das pessoas que dão medo na classe alta.
Malcolm McDowell ficou eternizado pela interpretação de Alex. Não foi de graça. O ator parece canalizar o espírito do personagem para a tela. Ele zomba constantemente da boa vontade das pessoas ao seu redor em vários níveis. Chegando até ao momento em que tira prazer da fantasia de ter sido ele o soldado romano quem chicoteou Jesus. O grande ápice de uma carreira que estava apenas começando. Infelizmente o ator tem feito papéis em filmes altamente questionáveis.
Kubrick faz um grande espetáculo visual, extrapolando na saturação de cores vibrantes como o laranja e o vermelho em contraste com um azul forte. Na sequência em que Alex sofre as consequências de seus crimes incapaz de se defender, ele usa um azul que o põe em contraste com os ambientes nos quais vai receber reações hostis. É sempre válido assistir um filme de um diretor com o brilhantismo técnico para contar uma história. Motivo pelo qual Laranja Mecânica é um dos grandes filmes da história.
GERÔNIMOOOOOOOO…
Vina, sua resenha ficou interessante, mas me fez pensar algumas coisas sobre essa ideia de “fidelidade”.
Você disse que não leu o capítulo final da história de Alex; à partir daí, presumo que não leu o livro. Pois bem, se não leu o livro, como pode afirmar que “faz com que Laranja Mecânica seja uma das adaptações mais fiéis ao material original”? Você não teria que conhecer as duas obras para falar sobre adaptações fiéis? E, estando eu enganada e você já tendo lido o livro, como pode falar sobre uma adaptação fiel se o final – além de desconhecido por você – foi ignorado pelo diretor/roteirista?
Além disso, fidelidade é um conceito bem complicado, não acha? Meu atual projeto de pesquisa na UnB é sobre isso, e, mesmo eu sendo uma daquelas pessoas entojadas que gostam de ver tudo igualzinho seria no livro, sei que isso é impossível. Eu gostei da sua resenha até o ponto em que trata do filme em si, mas quando você começou a falar sobre a fidelidade da adaptação, me peguei pensando se há como fazer essa análise se você não conhece as duas obras – que, como eu disse, inferi ser o caso porque você disse que não conhece o último capítulo da história.
Eu nunca vi o filme, tenho medo de ser violento demais, mas eu li o livro, e pelo que você falou da adaptação ali em cima, não há que se falar de uma obra “fiel”: mesmo que consigamos transformar essa ideia tão subjetiva em um conceito objetivo, como um filme que ignora o final do livro no qual foi baseado, pode ser chamado de fiel?
São só algumas coisas em que eu pensei enquanto lia a resenha! Espero que não fique chateado com o que eu disse!
Um beijo!
Marina,
Não fiquei ofendido. Não precisa se preocupar. Compreendo seu questionamento. Realmente, minha análise em relação à fidelidade ao material original é altamente questionável uma vez que não li o livro, como você presumiu corretamente. Porém, me atenho ao que disse por alguns motivos.
Primeiro. Kubrick não tinha roteiro, ele apenas filmou o livro que tinha. Mesmo não tendo o capítulo final da versão inglesa, o final do filme está nos livros. Ainda assim, Kubrick teve problemas com a mudança de mídia (como o fato de que o primeiro corte tinha quatro horas de duração, e provavelmente era muito mais fiel que o resultado final). Mudança de mídia requer mudança no material, mudar um final não é exatamente deixar de ser fiel, principalmente levando em conta que Kubrick foi “fiel” à versão que possuía. Um roteiro teria indicado muito mais variações na adaptação. Ainda assim, este argumento não me isenta de não ter lido o livro.
Segundo, não considero fidelidade ao material original critério de qualidade. Este argumento não quer dizer que o filme é original. Mas, como crítico, minha função ao analisar um filme é avaliar a obra pelas sua características fílmicas, não por adaptação. Quando disse o que disse sobre a fidelidade, estava mais querendo declarar uma curiosidade acerca da produção, não determinar uma qualidade ou defeito.
E terceiro, como você bem disse em seu comentário, a ideia de fidelidade em adaptações é subjetiva. E críticas não são documentos atestando se um filme é bom ou ruim. Críticas representam opiniões de pessoas cujos embasamentos nas áreas discutidas são um pouco mais aprofundados. E a palavra opinião é fácil de relacionar com subjetividade. Quando eu disse que o filme é fiel ao livro, estava dando minha opinião subjetiva.
Então você tem razão, eu não posso afirmar de maneira objetiva que o filme é fiel. Mas posso dizer que é da minha opinião, que pode ser discutida e questionada, que é fiel. Mesmo que não tenha lido o livro, que o final não seja igual à versão inglesa ou que fidelidade não seja um conceito objetivo.
Espero que não tenha sido hostil com minha resposta. Quero apenas alimentar a discussão porque a considero interessante e válida. Comente sempre que quiser.
Beijo!
Ah, que bom que não ficou chateado! =D
Não achei sua resposta hostil, e gostei dos pontos que você levantou. Gosto muito das suas críticas e acho que cada um no seu quadrado, né, como é que eu ia querer bancar a crítica sem o conhecimento que você tem? Posso dar minha opinião, mas daí a fazer uma análise como as que você e a Aysla fazem, fica difícil! rss!
Obrigada por manter a discussão rolando! Todos ganhamos com isso! Um beijo! =)