O jornalista vivendo nos Estados Unidos falou “Lincoln é o super-presidente por aqui.” Analisando o histórico dos filmes do país com suas figuras presidenciais é possível notar que ele foi o presidente mais representado. Participando até do primeiro filme de D. W. Griffith, O Nascimento de uma Nação. Por isso mesmo fui ver o Lincoln de Spielberg com medo.
Quando Spielberg se propõe a relatar eventos históricos, tende a cair na pieguice e chega próximo do ridículo com frequência. Por mais que eu tenha adorado Cavalo de Guerra, não consigo negar que o filme tem esse defeito em demasia. Então minha expectativa para Lincoln era uma adoração e endeusamento do tal super-presidente. Ou como um personagem o descreve no filme, “você é praticamente um semi-deus.”
Por isso mesmo fiquei feliz quando descobri que Daniel Day-Lewis recusou o papel por nove anos. O ator simplesmente não gostava do roteiro e só assumiu o cargo quando ficou de seu agrado. Considerando as filmografias de Spielberg e de Day-Lewis, confio mais no gosto do ator.
Para minha alegria, Lincoln segue mais como Munique que como Cavalo de Guerra, apesar de dar suas derrapadas aqui e ali. Não trata apenas do presidente, mas de seus maiores feitos, a décima terceira emenda e o fim da guerra de secessão.
Não sou fã de cinebiografias. Filmes contam histórias, biografias apresentam pessoas. As melhores são as que se focam em narrar uma história específica da tal figura. A melhor coisa que se pode fazer é mostrar esses dois eventos do presidente e não sua persona. Assim torcemos por ele e por seus atos. Por mais deturpados que pareçam.
Lincoln é conhecido por ter dobrado e desdobrado as leis a seu favor durante a guerra para conseguir seus objetivos. Não era a favor da escravatura, mas a usou para conseguir a emancipação. Comprou votos, mentiu para a câmara de congressistas e até mesmo ameaçou adversários. Mas o fez com um objetivo claro em mente, conseguir com que os humanos deixassem de ser escravizados.
O filme deixa bem claro os problemas enfrentados por ele. Em meio à divisão do país, ele próprio também estava dividido. Permitir que centenas de milhares continuassem morrendo na guerra ou permitir que pessoas continuassem a ser tratadas como animais de carga através da União.
Os Estados Unidos, assim como o Brasil e diversos outros países, possuem um histórico racista tenebroso. Os brancos não tinham só o preconceito ao seu lado, tinham também o medo. Com a abolição não teriam só negros livres, mas também ex-escravos rancorosos, concorrência de mão-de-obra e alguns entraves políticos. Libertar os escravos obrigaria o governo a ceder direitos humanitários diversos, como o sufrágio universal, discussão polêmica até os dias de hoje.
Normalmente Spielberg se aprofundaria nessas questões de forma quase melodramática, mas em Lincoln, as retrata como questões comuns da época. Em determinado ponto, um dos filhos do presidente pergunta a uma mulher negra se ela havia sido castigada quando escrava. Ela responde que apanhava com uma pá rapidamente por estar preocupada com outras questões. Como se ter apanhado de tal forma fosse coisa banal. Não há exploração do sofrimento.
Pessoas discutem a abolição como meio de acabar com a guerra, não como meio de libertação dos escravos. Homens e mulheres preocupam-se mais com a violência da guerra que com o seu histórico cruel de perseguição e aprisionamento de seres humanos. Mas nada é tratado com maniqueísmo. É apenas uma retratação da forma como as pessoas pensavam na época.
Por outro lado, o filme se foca demais nas questões familiares do presidente. Suas brigas com a esposa e com seu filho mais velho só alongam ainda mais um filme que já é longo o bastante. O filme ganharia muito mais retendo suas atenções apenas no suspense da aprovação da emenda.
E quando termina essa história principal, se alonga ainda mais para tentar engrandecer a figura do homem. Ainda assim, a trama da emenda é sensacional. É um suspense político com momentos de grande tensão, momentos cômicos colocados nos pontos certos. A montagem deixa os atores terem tempo em cena depois de cada fala, nos permitindo sentir as implicações por trás dos diálogos. Os tramites políticos, as enganações, as mentiras.
Não gostei de algumas formas de retratação do personagem principal. Ele sempre tem alguma fala sábia e parece quase perfeito. Sempre toma as ações certas e parece não ter imperfeições. Mas o peso de suas decisões é visível. O que é mais mérito de Day-Lewis que do diretor. O que vemos ali é o presidente, não o ator. Com qualquer outro ator isso seria notável, mas com ele é padrão.
A Sally Field se entrega ao papel de Mary Lincoln, e o elenco de apoio é assombroso. É um grupo sensacional de atores. Tem David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt (escolhido pelo próprio Daniel Day-Lewis), James Spader (hilário), Hal Holbrook, Tommy Lee Jones (melhor personagem do filme), Jackie Earle Haley, Tim Blake Nelson, Joseph Cross, Jared Harris, Michael Stuhlbarg.
A direção de arte é incrível. Vários cenários importantes da história do país foram reconstruídos. A casa branca, o capitólio, a câmara do congresso. Mas o que brilha é a fotografia. Janusz Kaminski coloca contraluzes fortes com os personagens parcialmente nas sombras. E o ambiente é esfumaçado, com um filtro acinzentado. Parece que estamos vendo aquelas imagens lindas por trás de um véu. Como se espionássemos aqueles momentos históricos. A direção de Spielberg ajuda, pois ele é um diretor com um apuro visual primoroso.
No geral, um bom filme, que acerta ao focar na parte certa da história, apesar de se aprofundar nas coisas erradas aqui e ali.
GERÔNIMOOOOOOOO…