Mais um presente que as Sessões de Clássicos do Cinemark nos dá. Esse foi realmente um presente. Nascido para Matar é um filme impecável. Com o típico perfeccionismo de Kubrick, cada take do filme é belo e comunica alguma coisa. De todos os filmes dessas sessões, acho que Nascido para Matar foi o melhor que assisti até o momento. Eu poderia falar sobre muitas coisas do filme, mas tem uma coisa em específico que é preciso destacar.
Poderia falar que a trama acompanha o período que o soldado Joker passou no exército durante a guerra do Vietnã. Que o filme é dividido em duas metades. A primeira na qual retrata a desumanização daqueles homens na preparação dos soldados e a segunda em que se revela como eles eram alienados em relação à guerra em que se encontravam.
Poderia falar sobre como Kubrick filma de forma quase robótica o treinamento/tortura dos soldados. Como a montagem nesta metade esvazia a ambientação de emoções. Como ele consegue apresentar os personagens principais mesmo que estes estejam apenas respondendo ao oficial superior.
Poderia falar sobre como a segunda metade varia de estilo documental para um tom mais fictício. Todas as falas parecem naturais de homens que não se importam com nada. Eles não sabem porque estão naquela guerra, porque as pessoas que “deveriam” proteger viraram seus inimigos.
Poderia falar sobre a incrível cena de suspense final, na qual Kubrick constrói terror com base em noção de espaço com apenas um único inimigo. A noção de perigo é real e sente-se medo pelos personagens. Principalmente em um filme do Kubrick, em que qualquer um pode morrer.
Pyle. Inocência transformada em monstruosidade.
Poderia falar sobre como ele transforma o personagem Pyle de um garoto ingênuo e com problemas mentais em um monstro. Como ele revela que aquele treinamento dos “salvadores” da América é a origem de homens como Lee Harvey Oswald. Como a menção do assassino de Kennedy é o momento em que Pyle decide se vingar da instituição. Como a fotografia no final do ciclo de Pyle cria uma cena de terror.
Poderia falar sobre como a música sobre Mickey Mouse no final do filme se encaixa em um enquadramento que cria a noção de que os Estados Unidos são ditadores ideológicos que se impõem contra o mundo.
O que é preciso ressaltar é a extraordinária cena em que o protagonista Joker enfrenta a escolha de matar uma garota vietnamita. Durante o filme, Joker repete vez atrás de outra que é um assassino e que foi para a guerra porque queria matar alguém. Não por conta de um instinto cruel ou algo do tipo, mas porque ele tinha curiosidade acerca da sensação de matar alguém. A guerra foi a desculpa necessária. O conceito guerra envolve matar como algo positivo. Assim, Joker pode matar sem ser julgado socialmente. Ainda assim, ele é o único personagem que não acredita na guerra e anda sempre com um button com o símbolo de paz e amor em contraste com os dizeres “Born to Kill” (Nascido para Matar) no capacete.
Então Joker fica diante de uma inimiga ferida e moribunda. Todos os companheiros querem abandoná-la para morrer sofrendo, mas ele sabe que a coisa mais bondosa a ser feita é matá-la. Então tem uma segunda desculpa “moralmente” aceita para tirar uma vida. Se você prestar atenção, Kubrick só retrata Joker através de um close que vai cada vez se fechando mais.
Joker contempla a possibilidade de matar.
À medida em que Joker se decide, junto com os companheiros, a matar a mulher, o close vai sumindo com a palavra Born. O símbolo de paz continua aparecendo. Até que ele toma a posição para o tiro, através da qual o button é tampado. De todos os símbolos que ele usava, a única coisa que o espectador vê é a palavra Kill. Não bastasse isso, Joker é o único personagem da cena cujo rosto não está completamente iluminado. Todos os outros já estão imersos na loucura da guerra. Joker está, neste momento, entrando no seu ápice de insanidade.
Isso tudo com um único take. Apenas um plano direto que conta muita coisa sobre a história retratada. É por isso que o Kubrick é o Kubrick.
MICKEY MOUSE..!