No início dos anos 80, a família Puccio (nome original do caso policial foi mantido, assim como todos os primeiros nomes) parece com qualquer outra família: composta pelo pai, Arquimedes, a mãe, Epífania, uma professora de artes, três filhos e duas filhas. Um dos filhos, Alejandro Puccio é uma estrela do rugby, esporte muito apreciado no país, e vai para uma escola de elite. Por trás da fachada de família comum, os Puccio mantêm um segredo sinistro.
Com a desmilitarização do país, muitos dos antigos seguidores do regime perdem postos e privilégios, ou mesmo seus empregos, e passam a utilizar as ‘habilidades’ adquiridas no período para se manter – essa é a premissa do filme. Através do filho Alejandro, Arquimedes arquiteta diversos sequestros de jovens abastados e vive do dinheiro do resgate dado pelas famílias.
Como a grande maioria dos filmes argentinos desde a década de 1980, O Clã se relaciona com a ditadura militar que tomou o país a partir de 1966. De maneira brilhante, o diretor Pablo Trapero consegue criar uma atmosfera de violência e tensão sem apelar para um ritmo rápido demais, o que merece muitos aplausos. A violência é colocada dentro do universo familiar através de cenas cotidianas do clã Puccio, o que a torna ainda mais assustadora.
A outra personagem central da história, Alejandro, divide a perspectiva com Arquimedes. A maneira como a vida dupla da personagem foi trabalhada no filme e o conflito que isso causa foi extremamente bem trabalhado. Durante todo o tempo, é impossível não sentir simpatia por ele, que está preso aos crimes dos pais por amor à família e por covardia ao mesmo tempo em que se deslumbra com o que a vida poderia ter sido, como uma estrela de rugby amada por todos.
Clã unido. Razões para o crime.
O contraste de cenas também é muito utilizado no filme e causa um efeito deveras interessante: enquanto acompanhamos uma festa entre a nata da juventude argentina, assistimos impotentes Arquimedes fazer mais uma vítima. Enquanto um dos sequestros tem uma virada inesperada, compartilhamos a cena mais quente entre Alejandro e o interesse amoroso dele. Ficamos felizes e tristes por ele.
O contraste de sensações que Trapero consegue causar no público pode se tornar uma marca registrada, pois nos coloca no lugar de Alejandro, a personagem com quem devemos nos identificar mais e que vive em dois polos extremamente opostos da vida: um é muito belo, alegre e cheio de possibilidades, o outro é feio, agressivo e só pode terminar no fundo do poço.
O trabalho de Guillermo Francella como o patriarca do clã é estonteante. A combinação de frieza e indiferença é ideal para alguém que pratica a violência como meio de vida. Da mesma maneira, ele consegue passar a imagem de um homem que perdeu aquilo que mais prezava, o poder, e que utiliza a própria família como um meio de obtê-lo de volta. A personagem de Francella causa uma mistura de sentimentos no decorrer do filme, mas a atuação permanece afiada.
Guillermo Francella. Interpretação estonteante.
Peter Lanzani como Alejandro também foi a escolha ideal. Ele é naturalmente gostável, vulnerável e fica excelente no papel do ‘garoto de ouro’. Ao mesmo tempo, Lanzani consegue manter as cenas de tensão e realmente fazer o público compartilhar de seus sentimentos através da tela.
Outro acerto de Trapero foi a trilha sonora do filme. A excelente escolha de músicas trabalha mais uma vez com a contradição: cenas de forte tensão são embaladas por hits dos anos 70, o que cria uma atmosfera de forte estranhamento e torna possível uma referência à técnica dos sequestradores de utilizar músicas altas para abafar o som dos gritos das vítimas.
O Clã é sem dúvida mais uma obra de excelência do fortíssimo cinema argentino e um grande concorrente para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Honra a história que conta e consegue transmitir com maestria as feridas que um regime autoritário deixam nas pessoas de um país – mesmo depois de terminado.
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