Um garoto, ao ver as notícias, ouvir histórias de parentes e as reclamações dos pais, pergunta para a mãe: “O que acontece se a população se revoltar e matar todos os políticos?” A resposta: “Teremos uma nação de assassinos.” O conto moralista não saía da cabeça enquanto rolava a sessão de O Doutrinador.
O primeiro “super-herói” brasileiro a ganhar os cinemas é Miguel (Kiko Pissolato), um policial de uma força especial que tem a filha morta por uma bala perdida e por não ser atendida em um hospital público por falta de profissionais no local. Isso logo depois de ele prender o governador da cidade por desvio de verba pública para a saúde.
Quando o político é liberado por habeas corpus, Miguel se mistura a uma revolta no palácio do executivo local e assassina o governador com uma máscara de gás para se proteger dos ataques da tropa de choque que protege o local. Assim, ele aproveita os meios ilegais que assumiu para descobrir a rede de políticos corruptos do País e buscar vingança pela filha como o Doutrinador.
Adaptação da HQ de mesmo nome criada por Luciano Cunha, O Doutrinador assume linguagem de quadrinhos para construir a narrativa. Desde o roteiro, que toma liberdades narrativas para falar sobre o Brasil, sem falar de nada específico da realidade brasileira.
A história se passa na cidade de Santa Clara, que é mistura das ruas quentes e movimentadas do Rio de Janeiro, da linha de prédios de São Paulo e do centro político federal de Brasília. A força policial de Miguel é da Polícia Civil, faz investigações da Polícia Federal e age como a Polícia Militar.
Na fotografia e na arte, as cores são duras, para remeter às tonalidades fortes usadas em gibis. O verde e o vermelho ofuscam na rua e na vida de Miguel, enquanto o dourado e o marrom revelam a vida de luxo dos corruptos, afastados da população. Da mesma forma, os personagens são bidimensionais, para reforçar um aspecto superficial quase caricato da produção.
É onde os diretores Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça, junto dos roteiristas Luciano Cunha, Gabriel Wainer, Rodrigo Lages e L. G. Bayão acertam. Fazem com que a história de Miguel seja um pastiche. Em grande parte porque os super-heróis provém de ideias incoerentes. Vale lembrar que o Batman é um homem rico que sai de noite para espancar pobres e prendê-los em celas especiais produzidas pela empresa dele.
Nessa mesma fantasia absurda, O Doutrinador serve de reflexão para diversas vontades de justiça da população brasileira. Enquanto começa como uma fonte de catarse para o espectador cansado de “tudo isso que tá aí” ao mostrar deputados, senadores, presidentes, empresários, vereadores e governadores trucidados com sadismo, aos poucos as ações dele produzem repercussões inesperadas.
Isso porque a corrupção, na análise do filme, é mais complexa que apenas um monte de políticos reunidos em uma cidade com as mãos sujas. Ela está na polícia, nos civis e nos criminosos. E, como acontece rápido no filme, nos nossos super-heróis. Não leva meia hora de produção para Miguel esconder provas, liberar bandidos e conspirar.
O pastiche dialoga bem com tudo isso, mas os realizadores não acertam o tom em toda a produção. Em certos momentos, a história segue o melodrama aberto sem dar destaque ao ridículo da falta de coerência com a realidade. E com atores limitados, como Pissolato ou a eventual parceira vivida por Tainá Medina, as cenas “sérias” caem no ridículo tanto quanto as propositalmente absurdas.
Essa mesma dualidade ocorre na mensagem final. Depois de uma produção inteira que reflete a estupidez de vingantismo contra políticos, o filme simplesmente fecha com 10 minutos que exacerbam a violência contra eles como um meio plausível para melhorar a sociedade corrompida do Brasil.
No entanto, a ação bem feita e o absurdo bobo e ingênuo garantem que a sessão passe rápido. Especialmente na retratação dos vilões. Eles riem feito idiotas do nada, apenas por serem malvados, e sempre são retratados como glutões malucos, sem personalidade além da vontade por poder. É de chorar de rir.