Entre 1861 e 1865, aconteceu no território dos Estados Unidos a chamada Guerra Civil Americana, ou Guerra de Secessão. Vários estados do sul formaram a Confederação, a favor do regime escravista. O resto do país, denominados a “União”, defendia a abolição e lutava contra a separação dos escravistas. Foram 4 anos de sangrentos combates, com mais de 600 mil soldados mortos, e a quase completa destruição da infraestrutura dos sulistas. A escravidão foi abolida e dali teve início a luta pelos direitos civis para os escravos libertos.
O Estranho que Nós Amamos foi roteirizado e dirigido por Sofia Coppola (de As Virgens Suicidas e Maria Antonieta) e originalmente baseado no livro A Painted Devil de Thomas P. Cullinan. Uma adaptação do livro foi estrelada por Clint Eastwood em 1971, com o mesmo nome desta versão.
Três anos após o início da Guerra Civil, John McBurney (Colin Farrell), um cabo da União ferido em combate, é encontrado em um bosque pela jovem Amy (Oona Laurence). Ela o leva para a casa onde mora, um internato de mulheres gerenciado por Martha Farnsworth (Nicole Kidman). Elas decidem que somente após garantirem a saúde dele, o homem deverá ser entregue às autoridades. Mas antes que isso aconteça, a convivência entre elas e o soldado ganha nuances e distinções, e o interesse nele gera inúmeros conflitos e desejos, especialmente por parte da professora Edwina (Kirsten Dunst) e da jovem Alicia (Elle Fanning).
Recebido como mais um dos projetos autorais de Coppola, O Estranho que Nós Amamos dá continuidade ao estilo visual e cinematográfico da diretora, que se destaca pela análise de figuras femininas em situação de extremo risco e pressão psicológica, em desenvolvimento pessoal e amadurecimento, além da criação magistral da tensão de forma sutil, a caminho da revelação final.
A história é contada de um ponto de vista totalmente único, especialmente para o momento histórico, onde o olhar feminino se torna chave para expressar as muitas camadas emocionais de cada personagem. Os minutos passam com sofreguidão, mas de maneira nenhuma cansativa. Momento a momento, a natureza de cada relação é construída, assim como os confusos sentimentos gerados em decorrência. O passar do tempo deixa cada ato mais angustiante do que o anterior, cria expectativa e levanta questões que levam o espectador a analisar os detalhes a fim de antecipar as respostas.
Colin Farrell entrega um personagem ambíguo, charmoso e atraente. O que o torna imprevisível até o final e alimenta ainda mais a aura de mistério da situação tóxica e corrompida em que os residentes do internato se encontram. Até muito tarde no filme, o espectador questiona quem ele é, o que motiva o personagem a agir como age, e se há ou não segundas intenções por trás de tudo.
Aliás, muito do que pode ou não ter acontecido antes de sua chegada na casa fica pendente. Uma explicação clara e conclusiva para o que aconteceu com os maridos e familiares das residentes é apenas instigada. Não é necessário, e o brilhantismo da diretora se encontra justamente nas escolhas que faz com relação ao que revelar, em que medida e em que momento do longa. Muito fica subentendido, a cargo do intelecto de quem assiste juntar pedaços de informações soltas para formar as cenas que não podemos ver.
Uma das características mais encantadoras do longa, e aqui mais uma vez tocamos em atributos presentes e frisados na maior parte dos filmes de Coppola, é a imersão. A ambientação estonteante, fotografia e direção artística de peso, trilha sonora (ou a falta dela). Visualmente, cada cena externa e detalhe de figurino conta um pouco da história, complementa os diálogos, e retoma a sensibilidade visual que por vez pode ter se perdido em alguma cena mais escura.
Os sons naturais do ambiente interiorano virtualmente abandonado, misturados aos sons da guerra que serve de pano de fundo, e as poucas notas que formam a trilha sonora presente somente nos momentos finais da trama, se encaixam perfeitamente com o todo.
Com a marcação precisa de tempo a cada nascer e pôr do sol, juntamente com a profundidade emocional das interações, e a contraposição das figuras, objetos e cenários, entrega-se uma certa textura, uma qualidade tátil, que se reflete na ambientação e deixa a experiência visual muito mais agradável.
Elle Fanning de destaca por conseguir equilibrar a inocência com a vivacidade e sensualidade da jovem personagem, sem parecer apelativa ou vulgar, o que seria facilmente esperado de muitas jovens atrizes em seu lugar.
Cada interação entre uma personagem e Farrell é única e diferente, se destacam em seus próprios méritos, e jamais se confundem entre si. Acrescentam qualidades variadas ao único personagem masculino em tela, e contam segredos da trama que as cenas e diálogos não necessariamente explicitam.
Com final honesto e visceral, as grandes expectativas são bem recebidas e bem pagas. Sofia Coppola recebeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes 2017, sendo a segunda mulher em 70 anos de Festival a ter tão merecida honra.