Nas pequenas pérolas que perderam com as mudanças políticas mundiais, o filão de filmes sobre a Guerra Fria não possui mais metade do impacto de quando o muro de Berlim estava de pé. Um exemplo dessa linha é este O Sol da Meia-Noite. Como em grande maioria das produções americanas da época, a produção trata sobre como o regime opressor soviético sugava a liberdade das pessoas.
Neste caso em especial, a história se foca no russo Nikolai, interpretado pelo bailarino Mikhail Baryshnikov. Radicado nos Estados Unidos, ele se encontra em um voo comercial internacional que cai na Sibéria. Descoberto pelos representantes da União Soviética, ele é forçado a ficar no território e treinar para uma apresentação. Para vigiá-lo, o sapateador americano que fugiu para a Rússia, Raymond (Gregory Hines), tem que praticar com ele.
O contraste entre os dois personagens é óbvio, o americano que fugiu para a União Soviética e o russo que fugiu para os Estados Unidos. Um é o oposto do outro, mas também são iguais. Nikolai se tornava cada vez um artista maior, mas era impedido de explorar todo o potencial artístico pelo regime, que proibia certas obras e expressões. Enquanto Raymond foi forçado a sapatear por ser uma criança negra. Quando cresceu, passou a sofrer com o racismo e entrou no exército, onde foi forçado a matar pessoas. Traumatizado fugiu para a Rússia, que lhe permitia viver como artista.
Os dois têm bons motivos para fugirem e odiarem as respectivas terras natais, mesmo que a de um tenha sido a salvação do outro. A princípio parece motivo para que se detestem mutuamente. Com o tempo, torna-se claro que é razão para se apoiarem. Se Nikolai apenas tentar fugir, coloca Raymond em perigo. Se Raymond faz o serviço que lhe foi pedido, toma a liberdade de Nikolai. E nenhum quer realmente fazer mal para o outro.
Eis onde se encontra o problema da ótima proposta do roteiro de James Goldman e de Eric Hughes. No começo, a União Soviética não é o grande vilão do mundo. À medida em que o filme passa, o socialismo volta a ser do mal. Especificamente encarnado na figura do antagonista, coronel Chaiko (Jerzy Skolimowski). O maniqueísmo é tanto que o final do filme tem uma mensagem fortemente relacionada à ideia de que um lado precisa vencer o outro.
Isso também gera outro problema. Como o filme é sobre se Nikolai vai ou não fugir, muita coisa depende de ações de agentes externos à trama central. Os dois protagonistas não têm muito protagonismo real. Eles reagem ao que acontece com eles e sofrem feito dois cachorros maltratados. É melodramático, mas a situação exige isso. O trauma, o medo e o desespero são no tom certo, pena que muito da produção seja apenas sobre se eles vão ou não se dar bem, e não sobre como podem se sacrificar um pelo outro. Isso só acontece mesmo, no clímax.
O filme, porém, é de uma qualidade técnica irrefutável. Isso é notável na cena de abertura, um número musical extraordinário em que Barichnikov demonstra todo o talento em uma dança impressionante. É visível o nível de força, de equilíbrio e de controle do bailarino. Mas mais que uma demonstração dele, o diretor Taylor Hackford filma com primazia. Cada movimento e posicionamento da câmera têm propósito. É quase como se o espectador fosse parte da apresentação.
Outra cena que merece destaque é a cena em que o avião faz o pouso forçado na Sibéria. É tudo feito em escala e em cenários reais. Em 1985 não havia computação gráfica para fazer por métodos digitais. Para fazer algo como uma carcaça de avião explodir em alta velocidade na época deve ter envolvido um trabalho de produção gigantesco.
A fotografia cria um jogo de meias sombras. Tudo parece levemente no escuro, para dar a impressão de que algo está escondido o tempo inteiro. Seja um segredo ou um perigo. Funciona muito bem, gera suspense e imagens belas.
Também impressiona a construção da Rússia. Se a produção realmente foi à União Soviética, é surpreendente que eles tenham aberto os portões para que uma equipe filmasse lá algo sobre como o capitalismo é o caminho da liberdade. Isso em 1985, antes do fim da Guerra Fria.
Baryshnikov não é o melhor intérprete do mundo, mas como muito do que o personagem exige dele é talento de dança, ele não compromete. Porém, o Gregory Hines o devora em cena. O drama dele é tão mais sóbrio e pesado que faz parecer com que Nikolai seja só um garoto revoltado. Deve-se dar destaque às participações das atrizes Isabella Rosselini e Helen Mirren como pares românticos dos dois protagonistas. A italiana tem pouco mais que o papel da mocinha indefesa, mas ainda o faz com elegância. A inglesa, por outro lado, tem uma complexidade muito mais funda. Ela representa uma artista de sucesso que nega para si mesma a dor de não poder fazer o que ama com plenitude.
O Sol da Meia-Noite tem uma descendência no ritmo. Começa com uma trama interessante, personagens indentificáveis e cenas de tirar o fôlego. À medida em que se aproxima do final, parece que se foca em pequenos diálogos que não levam o enredo para frente, por mais que tenham um drama curioso. O desfecho cai no maniqueísmo padrão e incomoda.