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O reinado da Pixar Studios, até hoje realizador de algumas das melhores animações da história dos Estados Unidos, é invejável. É difícil encontrar alguém que não reconhece o valor dos dez filmes iniciais da produtora. E agora, depois de tantos anos e tantas reciclagens de franquias, eles retomam o que talvez tenha sido um dos longas mais inteligentes, Os Incríveis.
Logo após os eventos do original, a família Pera, em que todos os membros têm super poderes, perde todos os benefícios do governo por ter usado as habilidade em público. Quando Winston Deavor (voz original de Bob Odenkirk) oferece a chance de mudar a opinião geral e iniciar uma campanha de marketing para permitir o retorno das ações de heróis, eles não titubeiam em aceitar.
Só por ter essa mistura de elementos políticos e éticos na história, já é possível notar que não é exatamente um filme infantil. Ainda que seja uma animação caricatural com muitos momentos voltados para as crianças, este Os Incríveis 2 (assim como o primeiro) dialoga com o adulto mais exigente, assim como com os menores.
Não é à toa que a iniciativa para a tal campanha precisa ser tomada justamente pela matriarca da família Pera, Helena (voz original da Holly Hunter). Com isso, ela sai para cumprir o trabalho tradicional deles, enquanto o pai, Beto (voz de Craig T. Nelson), tem que ficar em casa para cuidar das crianças. O que vai abrir espaço para reflexões sobre a inversão de papéis entre maridos e esposas na década de 1950.
Com isso, e muito mais, o diretor e roteirista Brad Bird (o mesmo do original) acerta ao destacar duas tramas paralelas para a família. Enquanto a Mulher Elástica (alter-ego de Helena) enfrenta o vilão Hipnótico, Beto tem que aprender a lidar com os filhos. E ambas histórias são envolventes e revelam lados diferentes da moeda.
Ele quer provar que não é inapto e que se importa com as crianças, enquanto ela dialoga com a irmã de Winston, Evelyn (voz de Catherine Keener) sobre os papéis das mulheres em uma sociedade machista durante a caça ao criminoso. E os dois enredos conduzem ao clímax final, quando o vilão não apenas funciona como inimigo físico, mas como consequências de um mundo com super-heróis reais.
O que faz com que as escolhas estéticas ressoem mais fortes. O universo da franquia Os Incríveis é embasado em um estilo de Art Déco, mas para objetos futuristas. O resultado é um mundo retro futurista, com visual que condiz com padrões das décadas de 1920 a 1950. Quando a grande maioria dos super-heróis foi inventada e quando surgiram os conflitos das mulheres que saíam de casa para trabalhar nos Estados Unidos.
Além de belo, o visual dialoga com a discussão proposta por Bird. E como ele usa um bom trabalho de fotografia, alinhado com a qualidade técnica da Pixar, o que se vê na tela é estonteante. Detalhes como cabelos, uma bola de gelo e até um brócolis parecem de verdade. O diretor faz com que a cor verde apareça em momentos de perigo, a vermelha represente os ambientes familiares.
Em certo momento, Winston conta sobre o passado dele e da irmã. A imagem dá um close no rosto do personagem com um fundo escuro, a câmera se move um pouco para a esquerda e aparecem os outros personagens em um reflexo. O espectador compreende que é um vidro. Quando ele volta a se animar, a câmera muda para um ângulo aberto é todo o ambiente estava claro o tempo inteiro, era apenas o lado de fora que não tinha iluminação, o que era determinante para encontrar com o humor de Winston.
A composição de Michael Giacchino também se adequa ao padrão estético. Com ritmos determinados por instrumentos de corda e melodia entoada pelos de sopro, ele remete a músicas que se assemelham muito a tramas de ação e espionagem típicas dos anos 1950 e 1960. Inclusive, em certo ponto, há uma homenagem ao desenho Johnny Quest, que retinha muitos detalhes dessa mesma estética para histórias de aventura.
Além disso, onde Bird realmente se destaca é no comando das cenas de ação. Logo na abertura, que retoma onde o primeiro filme parou, a família se mete em uma perseguição alucinante pela cidade. Com segurança, o diretor coloca as câmeras em pontos fixos dos prédios e das ruas, como se o espectador fosse um transeunte que assiste a destruição. Ainda assim, todos os enquadramentos dão os detalhes necessários para a compreensão do que ocorre espacialmente.
Enquanto tentam parar uma máquina de destruição descontrolada, os Pera se dividem entre enfrentar o equipamento gigante e garantir a segurança do bebê Zezé. O caçula dá o tom de diversão para a perseguição, ao mesmo tempo em que os obstáculos nunca param de desafiar as habilidades da família. Com ritmo rápido, as cenas de ação são divertidíssimas e envolventes.
De ruim, há apenas que falar da dublagem. Em vários momentos, algumas falas parecem estendidas, como se os dubladores alongassem um ou outra sílaba para conseguir encaixar essa ou aquela palavra em certa fala. Em um especialmente vergonhoso, a tradução faz referência ao Raul Gil e ao Acre.
Por outro lado, com a Mulher Elástica há mais criatividade. Com direito a um momento engrandecedor quando ela é chamada por outro mulher na rua de poderosa depois. Inclusive, ela com frequência é retratada ao lado de mulheres que a admiram e que demonstram querer crescer graças a ela. O que é relevante para o momento atual e é bem retratado com uma personagem complexa e bem trabalhada.
Helena é uma mãe antes de ser uma heroína e, apesar de querer manter a família em segurança, tem a noção de que permitir aos filhos colocarem os poderes à prova pode ser o melhor para eles. Há uma dualidade nos interesses dela. Ela quer se sentir forte e, de fato, parece ganhar um brilho quando está em ação. Mas também quer a calma e a segurança domiciliar. O que garante que o filme é mais dela dessa vez, que de Beto.
Por fim, Os Incríveis entrega mais do que o primeiro já havia concedido. Uma aventura envolvente, com um excelente ritmo, muitas risadas e ótimas cenas de ação. O fato de ainda refletir sobre relações familiares de maneira adulta ao mesmo tempo em que é capaz de manter os olhos das crianças grudados na tela demonstra o valor da Pixar, e de Bird, como realizadores interessados em contar boas histórias, divertidas e com algo a ser refletido.