Na apuração de certa matéria, ouvi de uma entrevistada que a mulher negra só não sofre racismo se não sair de casa e não ligar a TV, porque na programação vai ver que o lugar dela é com o filho preso, pobre e em risco de vida. As palavras abriram os olhos para uma realidade cruel do Brasil. E ter um filme como este Praça Paris é de grande relevância.
Em um contraste da psicóloga portuguesa Camila (Joana de Verona) com a paciente e ascensorista Glória (Grace Passô), a diretora Lúcia Murat revela como o medo rotineiro que aflige mulheres de todo o País é diferente. A primeira atende a segunda como parte de uma pesquisa acadêmica e, de uma distância segura, começa a descobrir a realidade de moradores das favelas.
Ao mesmo tempo em que o recurso é válido para abordar diversos aspectos sobre o racismo e a indiferença das classes mais “altas”, ele também cai na armadilha de tornar o drama de Camila menor. Enquanto Glória tenta ajudar o irmão na prisão, escapar do preconceito policial e enfrentar os traumas de abusos do passado, a psicóloga se assombra e teme.
Porém, no medo, Camila não tem sequer uma fração do sofrimento de Glória. Ela não percebe que as palavras usadas na pesquisa não ajudam de verdade. Da mesma forma que não entende que evitar intimidade com a mulher que ajuda, na verdade mais atrapalha a vida dela.
É onde se encontra a potência do filme. Glória ama o irmão, mas o odeia porque os crimes dele afastam as pessoas da vida dela. E Camila, preocupada com coisas banais, como truculência policial desmedida (banais porque Glória sabe que não tem solução além da violência e já está acostumada com isso, não por ser certo ou aceitável), não percebe os verdadeiros problemas da paciente.
Aos poucos, as duas se interessam mais do que deveriam uma pela outra, e Murat representa isso por rápidos cortes que simulam a imaginação de ambas. Glória vê a psicóloga com o namorado e os imagina durante uma transa. Camila descobre sobre parte da rotina da paciente, e começa a ter pesadelos com aquilo no que é uma das cenas mais assustadoras do longa.
Essa cena, diga-se de passagem, é a única realmente tensa na trama da personagem. O medo crescente de que a rotina de agressões da outra invada a vida dela gera cenas que são cômicas acidentalmente. Especialmente porque ela começa a ter medo de coisas bobas, como um entregador de pizzas. O que é usado por Murat para demonstrar de onde surgem os preconceitos entre classes e até o racismo. A premissa é boa e passa a mensagem, mas o tom não funciona como a diretora e o roteirista Raphael Montes (um autor de livros cujo trabalho eu detesto pessoalmente) pretendem.
Ainda assim, Murat é uma diretora inteligente. Além de enquadramentos belos, usa da luz para contar a história. Seja em uma cena em que mergulha Camila nas sombras enquanto ela descobre um vídeo violento no celular de Glória, seja ao separar as duas durante um diálogo com um objeto em primeiro plano. Isso sem falar com a ótima mixagem de som somada a cores frias em baixa tonalidade nos ambientes para construir a atmosfera urbana do Rio de Janeiro.
As duas atrizes estão excelentes. A luso-brasileira Joana de Verona esconde os medos de Camila em olhadas rápidas para todos os lados e com gestos que revelam um cuidado em verificar os pertences. Já Grace Passô deixa transparente uma quase indiferença da personagem com a violência ao redor. É quase um incomodo por fazer parte do dia-a-dia. Mas também é repleta de vida nas pequenas coisas que dão alegria para a personagem.
O resultado é um filme desequilibrado devido ao peso dos dramas das duas protagonistas. Apesar de ambas serem identificáveis pelo espectador, a situação de Camila parece boba em comparação com a de Glória. É tudo sofrimento e merece ser respeitado, mas cria um problema de ritmo que cansa. O que vale, no entanto, é a crítica, que não perde a força e o peso.