Princesa Mononoke é uma das coisas mais impressionantes que já vi em termos de animação. Não apenas pela qualidade como filme, história e narrativa, mas principalmente pela técnica. Se um dos talentos de Hayao Miyazaki e o estúdio Ghibli é dar vida para seres que não existem, eles atingiram o ápice dessa capacidade aqui.
Ashitaka é o príncipe e protetor de uma vila rural. Um dia ele precisa matar um espírito da floresta que foi envenenado e atacou o povo dele. O confronto deixa uma marca no braço direito dele, vai tomar o resto do corpo e eventualmente o matará. Ele parte em uma jornada para encontrar a cura. Na viagem, encontra uma cidade industrializada em guerra com espíritos da floresta. Dentre eles, um grupo de deuses lobos adotou uma menina, apelidada Princesa Mononoke, que luta contra os humanos. Ashitaka resolve se envolver no conflito.
O jovem é um dos heróis mais interessantes da filmografia de Miyazaki. Ele não julga nem os humanos, nem a natureza, mesmo que os dois demonstrem, com frequência, que estão errados. Ele é, inclusive, o segundo ser mais sábio da obra, atrás apenas do representante mudo do espírito da floresta. O protagonista é, na verdade, um manifesto do diretor em relação a três crenças pessoais. Primeiro, em relação a uma convivência pacífica dos humanos com a natureza. Segundo, uma ideia pacifista de diálogo no lugar de conflito. E terceiro, um ideal de disciplina e amor sentido ao extremo.
Ashitaka caça com sua corça. Ideal humano.
Nas representações xintoístas da natureza, os deuses e espíritos são seres em equilíbrio que se enfurecem e podem até ser cruéis caso sofram de algum mal. Miyazaki usa aqui os três animais mais representativos da religião. Os Lobos são os protetores, os javalis são a coragem cega e os veados são a paz e a sabedoria. Daí a razão para os dois primeiros se envolverem diretamente em confronto aberto contra os humanos. Eles estão em desequilíbrio e não estão completamente certos. Os humanos, por sua vez, aprenderam a viver melhor e a lidar com doenças graças à tecnologia. Não percebem que maltratam a natureza no processo, e quando se dão conta do que fizeram, esta se apresenta na forma de animais espirituais gigantes que querem matá-los. Não há lado certo nem errado, mas numa guerra, é difícil ver além do rancor para com o inimigo que matou companheiros.
Por ser estrangeiro, Ashitaka é justamente o personagem que consegue ver a situação com clareza e objetividade. Ele não toma lados e vai, com muita frequência, se meter no meio das batalhas e lutas para impedir as mortes. Ele tenta o diálogo, mas o ódio mútuo sempre fala mais alto. O que leva ao final relativamente pessimista da animação. É o pessimismo de um diretor que não acredita mais nos homens, mas vê esperança no futuro, nas crianças, em um possível equilíbrio e, acima de tudo, no amor.
Eis outro ponto da interação de Ashitaka com os outros personagens. Ninguém vê nele um inimigo e todos admitem gostar dele, o que não resulta em uma solução. Mesmo com Mononoke, por quem ele anuncia imediatamente estar apaixonado. Ela também o ama, mas, contrária aos métodos do diretor, complica demais o sentimento e não corresponde às juras dele.
Amor dificultado. Mononoke e Ashitaka, separados pela guerra.
Em meio a isso, violência e sangue. Os lobos não são tímidos na hora de morder e arrancar partes de humanos e estes não possuem pudor para matar animais. Próximo ao final, diga-se de passagem, o fazem com um requinte de maldade que beira o perturbador. Se tem um filme de Miyazaki que não é feito para crianças, este é Princesa Mononoke.
Ao mesmo tempo, tanta violência e ação requerem uma animação detalhada e bem feita. Daí cenas como a primeira batalha entre Ashitaka contra o espírito que invade a vila enchem os olhos. Ver o herói cavalgando contra a divindade é como olhar para pinturas se movendo. Não parece apenas mais um efeito de movimento, mas uma ação real. E isso se dá por todas as duas horas e quinze da produção. Em todo esse tempo, cada segundo conta com pelo menos oito desenhos feitos a mão. Para que a fluidez entre todos eles nunca perca o passo é necessário um preciosismo técnico assustador.
Princesa Mononoke é uma das mais belas e tristes animações já feitas. Não é apenas porque ainda resta esperança em novos ciclos que não deve-se ficar triste com coisas que acabaram. Principalmente porque tudo acaba um dia, e este filme parece ser uma elegia a um desses fins.
FANTASTIC…