Val (Regina Casé) é empregada doméstica de uma família rica de São Paulo há mais de dez anos. Próximo às provas de vestibular das faculdades locais, ela recebe uma carta da filha Jéssica (Camila Márdila), com quem não teve contato por mais de três anos. Durante os dias antes da avaliação, a garota precisa ficar na casa dos patrões da mãe, onde ela mora. Sem a educação de subserviência da progenitora, Jéssica cria conflitos nas relações da residência.
Que Horas Ela Volta? tem parentesco com o premiado O Som ao Redor, de 2012. Ambos tratam das relações comuns aos diversos lares de classe média brasileiros em que pessoas pobres trabalham em nível próximo da servidão. Aqui o foco são as empregadas domésticas e as relações de maternidade que criam com os filhos das patroas e como se afastam dos próprios.
O título do filme é enunciado pelo menino Fabinho logo na cena de abertura, ao perguntar para Val quando a mãe voltará para casa. Logo nesta cena, a diretora e roteirista Anna Muylaert faz um corte que explicita as questões. Fabinho é criança e tem uma cadela filhote. No próximo take, uma cachorra grande a segue para ir servir o adolescente Fabinho (Michel Joelsas). Val passou dez anos com aquele menino. No primeiro take, ela não consegue falar com a filha pelo telefone e, na tristeza, encontra conforto no garoto tão próximo.
Val tem mais proximidade com Paulinho, filho dos outros.
Muylaert compõe rapidamente a rotina de Val com a família, composta por Fabinho e os dois pais, dona Bárbara (Karine Teles) e doutor Carlos (Lourenço Mutarelli, excepcional), como Val os chama. Os ambientes da casa pelos quais ela perambula são brancos e inexpressivos e as roupas que ela tem que usar também. Os enquadramentos estáticos acompanham a situação inerte do ambiente. Com frequência, a empregada é vista emoldurada como entre grades ou presa através de pequenos quadrados de uma janela ou porta de vidro. A imagem explica que ela é prisioneira da condição social.
Val acompanha tudo contente, como se a interação com os patrões fosse natural. Considera Bárbara uma amiga e a patroa fala que ela é parte da família. A empregada parece acreditar que tem menos valor e que a relação é totalmente justa. Mesmo que viva em condições piores na mesma casa. É quando Jéssica chega que tudo vira de pernas pro ar. Em uma cena brilhante, acompanha-se a apresentação de Jéssica para a família patroa. O texto cheio de cortesias e pessoas que se esforçam para ser simpáticas é enriquecido pela direção, que faz com que as posições em cena e os olhares retidos revelem diversas camadas de tensão. O pai José Carlos observa a garota com lascívia, o filho parece chocado com o quanto ela é descolada e se parece com as colegas mais extrovertidas e a mãe está incomodada com a velocidade com que ela se acomoda no ambiente.
Quem fica mais irritada com a presença progressista é Val. Tão acomodada com a discriminação, não consegue compreender a independência e segurança da filha. Quando conversa em segredo com Fabinho sobre ela, é Val quem diz com maior julgamento: “Ela olha pra tudo como se fosse presidente”. A insubordinação social de Jéssica ao ter a “ousadia” de não se colocar como diferente dos chefes é apresentada aos poucos. Como ela ousa recusar sexo com o patriarca rico? Como ousa se apresentar na casa com a mesma desenvoltura da matriarca rica? Por último, e a ousadia que determina o choque final, como ousa ser mais preparada para seguir caminho de privilégios que o garoto de origem rica?
Lourenço Mutarelli perturbador para cima da filha da empregada.
Com a presença da menina, os enquadramentos estáticos passam a se mover. Os planos abertos se fecham, a direção de arte muda as cores. Enquanto Val vê a família como um quadro modelo, planos subjetivos mostram como Jéssica vê os defeitos individuais de cada membro. À medida que os desafios do comportamento dela revelam os problemas para Val, ela deixa de participar dos ambientes brancos da casa e se mistura às cores vivas da casa.
A interpretação da Regina Casé foi merecidamente reconhecida no festival de Sundance. A atriz é muito informada e compreende que os valores da personagem são fontes de ignorância. Ela a interpreta com uma sinceridade tocante. Ainda assim, Camila Márdila rouba o filme. Tanto pelo fato de que ela é boa atriz como pela qualidade da personagem, que desperta empatia justamente por carregar o ponto de vista do espectador informado. De resto, vale destacar a participação do Lourenço Mutarelli, que faz de José Carlos uma figura ultrapassada e patética, ao mesmo tempo em que é um homem de classe média que usa camisas de bandas atuais como Arcade Fire e Arctic Monkeys.
Fique atento para o final do filme, no qual Val desperta finalmente quando percebe que o único erro que deveria perceber na filha é o mesmo que cometeu jovem. É também onde o filme se perde um pouco. Entre tantas abordagens acerca da discriminação, focar nas relações maternais parece abandono de oportunidade de realizar algo maior. Ainda assim, como fecha de forma cíclica, o tema principal bate com força durante o sorriso que Val abre ao encontrar o próprio caminho.
GERÔNIMOOOOOOOO…
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