A Guerra ainda ecoa na Europa
É impenetrável a alma através da imagem. Nos sobra apenas, na película, o poder de transformá-las em sensações, em sentidos, fazer com que cada frame decodificado por nós, seja ecoado de forma a nos trazer à tona uma realidade. E que esta seja não invasiva, consciente dos fatos, consciente de um passado. Era regra, até então, em Rossellini, enxergar os resquícios de uma catástrofe, visualizar a sujicidade. O tema, em Alemanha, Ano Zero, continua sendo o contexto da Segunda Guerra Mundial. Porém, diferente Roma, Cidade Aberta e Paisá que se passam durante os conflitos entre Aliados e países do Eixo, Alemanha, Ano Zero busca no pós-guerra as reverberações do que estava ali, escancarado: Uma Alemanha destruída.
Ao olhar para o povo alemão, Rossellini vai além. Utiliza-se da trajetória do garoto Edmund para nos colocar a par de um contexto emergencial, crítico. Um pós-guerra que havia transformado a Alemanha numa nação desconcertada em que, no rosto das pessoas, podia se ver a vontade de reerguer-se, mas, como já dito, a cidade lhes provava o contrário. E saber viver na anatomia desfigurada das cidades alemãs tornava-se, a cada dia, um desafio, principalmente do ponto de vista de um garoto.
Edmund sai à vista dos escombros, percorre as ruas disformes, atravessa os amontoados de concretos deixados ao chão. Seu rosto, adverso ao de uma criança, possui a seriedade de um homem. Não por escolha, mas pela necessidade. A busca incessante por uma condição melhor à vida faz do garoto dono do próprio mundo, possuidor de decisões que influenciam até na vida de seus parentes. É dele que a família consegue batatas para poder se alimentar.
É no rosto desse garoto que se carrega o peso de uma infância sobre a qual o mundo sucumbiu. Entretanto, é neste mesmo rosto que se vê a inocência ao encontrar o professor nazista de épocas atrás. É na figura do professor que vemos a personificação daquilo que Rossellini produziu de forma similar em Roma, Cidade Aberta. A ideia do fascismo vem carregada das fraquezas humanas, expostas em tela. Na imagem do professor vemos a perpetuação da ideia de homens superiores e é nesta ideia que Edmund irá se agarrar. Não por verificar-se nele alguma semelhança ao professor, mas porque trata-se, acima de tudo, de uma criança.
Por mais que Rossellini coloque Edmund em outra roupagem, sua inocência é visível. Não há como fugir disso e nem o próprio diretor o quer. A capacidade de transbordar em tela a imagem de um garoto sendo mais do que sua idade o permite, não o faz menos criança. Na cena em que, através de um ato frio, Edmund decide envenenar seu pai existe uma visível preocupação de Rossellini em estabelecer a ação dentro da mise en scène criada. Fortifica o sentido da sequência, do que representa o garoto para o contexto fílmico. Não há ali presente o mal. Há sim o resquício de algo que ainda ecoa pelos arredores da Europa.
Como se pode querer que uma criança seja capaz de compreender? Como se pode culpá-la?
Seu rosto já revelara a destreza de uma criança astuta e que se confundira com um olhar de um homem misterioso, reprimido pelo que se viveu. Mas, indo além disso, era apenas um garoto que agora tinha que lidar com as consequências da morte de seu pai. E é nesta sequência Rossellini nos promove uma das mais belas sequências finais da história do cinema.
Edmund sai em busca de algo que nem a ele mesmo compete. O rosto do garoto junta-se a ao corpo desgastado pelas feridas que já lhes foram causadas. Só resta a ele procurar por um alento que não existe. Por vezes ele é renegado. Nem ao menos sentir-se criança ele consegue. Porém, diante daquela construção atmosférica, verifica-se a impenetrabilidade para com a imagem. Não se consegue extrair do garoto aquilo que se pensa como necessário. Não comporta-se na figura de Edmund o desvendar de seus motivos. Ele é da forma que o é. A tristeza confunde-se com a imagem de um garoto. Em cima de um prédio destruído, ele brinca de atirar. O tiro há de sair mais uma vez e irá apontar para o chão. E será na forma de Edmund.
Rossellini, em Alemanha, Ano Zero, nos apresenta a realidade. Não só por revelar parte de uma Alemanha destruída, mas, por nos permitir entender a imagem, sem interferi-la. Sem nos obrigar a conduzir a história por um viés ideológico acreditando que este personagem é isto ou aquilo. Os motivos e mistérios que entornam a película são parte de um contexto não necessariamente revelado para o espectador.
Faz parte das características do neorrealismo italiano admitir que, ali, existe um objeto fílmico que se permitiu construir uma verdade e, esta verdade, precisava ser mostrada sem apontar ou mistificar seu objeto. Tudo o que se reverbera, tudo que ecoa, seja através das pedras empilhadas, dos rostos pálidos de fome, das andanças de Edmund em busca de comida, de um discurso de Hitler gravado em vinil, serve como espelho do real e atinge a tela como um estilo. Um estilo necessário para a compreensão, sem julgar o ser humano. Pois, este já havia sido julgado pouco tempo antes. Era necessário humanizar.