Durante uma das primeiras apresentações na TV, Simonal é visto de costa para a câmera, com o auditório lotado à frente. Depois que ele anima o público com a música Meu Limão, Meu Limoeiro, ela sai do palco, dá a volta no teatro até sair pelas portas da frente. Para no barzinho do lado, bebe um copinho de cachaça, e volta para o tablado, onde consegue retomar a apresentação.
A cena demonstra muito do desbunde técnico que é esta cinebiografia de Wilson Simonal, músico poderoso e de sucesso do período da ditadura. Durante a época, tornou-se persona não grata ao se envolver com um escândalo. Devido a isso, nunca mais conseguiu retomar a carreira e o reconhecimento artístico.
Essa queda é retratada com sinceridade no filme. Em grande parte, por causa do mesmo recurso técnico da cena mencionada. A câmera começa no palco com o personagem, o segue por todo o teatro até o bar e retorna até o estrado sem corte. O que poderia ser só uma desculpa para dizer que um take tão elaborado foi feito pela equipe, serve aqui como ferramenta quase documental.
O espectador segue Simonal quase sem julgamento. Vê-se, apenas nesta cena, ele ser divertido, um bom apresentador e intérprete, um exemplo do que era chamado de pilantra (hoje em dia, o ínfame malandro), e também um egoísta e narcisista. O espectador encontra todos esses traços sem julgamento da câmera, que apenas segue aquela forte personalidade para cima e para baixo.
Obviamente, não existe reprodução sem viés. Mas o que o diretor Leonardo Domingues faz é simular isso ao filmar as cenas escritas por Geraldo Carneiro como se fosse um espião que pega os diálogos quase de surpresa.
Com tons de sépia e iluminação que remete a holofotes, além de pequenos detalhes que fingem decaimento de imagem, a direção de fotografia do Pablo Baião reforça esse estilo do diretor. As cenas parecem filmagens encontradas da época. Tanto que imagens reais de apresentações de Simonal se encaixam naturalmente na montagem.
Essa vontade de criar um viés quase objetivo faz com que os momentos que arruinaram Simonal possam ser vistos de pontos de vistas diferentes do que o roteirista e o diretor tinham em mente. Da boca do personagem, saem todas as teorias que eles parecem acreditar sobre as causas para o eventual fracasso.
Mas o espectador também será capaz de ver claramente as responsabilidades de Simonal. Assim como naquela cena descrita no começo do texto, é possível notar traços de narcisismo, de manipulação, e de falta de empatia. Quase por ironia, a forma como o cantor distorce parte da resposta às suas ações se assemelha muito a negações de políticos atuais.
É quase um atestado contra os argumentos dos realizadores, que buscam retratar a inocência de Simonal, mas criam (assim como ele fez contra si mesmo) justamente o contrário. Ele não era um monstro, mas um humano como todos os outros. Fez atos que ajudaram a muitos, e outros que trouxeram o mal.
Justamente por essa capacidade, mesmo que acidental, de permitir uma leitura contrária, o filme ganha um valor único. Engrandecido pelo primor técnico e pela interpretação camaleônica de Fabrício Boliveira (é impossível reconhecer sequer a voz do ator por trás do personagem).
O filme, porém, ainda sofre com um ritmo acelerado porque o roteiro parece sentir a obrigação de mostrar momentos desnecessários para a história. Grande parte do trecho em que conhece a esposa Teresa (Ísis Valverde) e a parceria com Carlos Imperial (Leandro Hassum surpreendente) são desconexos do que realmente importa.
No balanço das biografias nacionais, ainda sai no lucro. A produção é acima da média para o gênero, e é um ponto a mais de qualidade para o cinema brasileiro. Sem contar com a lembrança que acerta ao não exaltar um grande artista. Infelizmente, ainda atual em relação a algumas celebridades.
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