Trash é um caso especial para o cinema nacional atual. Enquanto a produção do Brasil é dependente de subsídios do governo, em lugares do mundo onde o cinema é um grande comércio, a arte é autossuficiente. Co-produção entre o Brasil e a Inglaterra, Trash une as duas formas de financiamento e vira uma mega-produção brasileira.
Raphael é um menino que encontra no lixão onde trabalha, e vive em comunidade, a carteira de José Ângelo (Moura) cheia de dinheiro. Quando o policial Frederico (Mello) aparece na comunidade com oferta de recompensa pelo item, Raphael parte junto com os amigos Gardo e Rato para investigar o que tem de tão especial no utilitário. Descobrem uma grande trama de corrupção envolvendo políticos e passam a ser perseguidos.
Wagner Moura. Carteira perdida.
Apesar das aparências, Trash não foi iniciado pensando em retratar as desigualdades sociais brasileiras. A trama original se passava em um país fictício. A escolha de filmar no Rio de Janeiro, porém, pareceu adequada à história. No período de pesquisa de locações por lá, o diretor Stephen Daldry se apaixonou pela cidade e colocou as questões sociais ao adaptar o roteiro para terras tupiniquins. Porém, o tom de aventura infanto-juvenil domina. Ao contrário de filmes do estilo, entretanto, o mundo de Trash é bem mais cruel que a imaginação simplória de uma criança.
O roteirista Richard Curtis adapta o livro famoso de Andy Mulligan. Dono de um humor tipicamente inglês e com obras repletas de comentários positivos sobre a humanidade (roteirizou um dos episódios mais belos de Doctor Who e dirigiu o ótimo Questão de Tempo), Curtis dá o tom leve da visão do três meninos para este mundo bizarro da corrupção do Rio de Janeiro. Os três sabem que a vida é difícil porque vivem da sujeira de outras pessoas com fome e lidando com abusos, mas ainda são crianças e agem como tal. Escrever este tipo de abordagem é complicadíssimo para um adulto, mas Curtis o faz com maestria.
Um inglês, entretanto, não é a pessoa mais adequada para escrever diálogos passados no Brasil. Principalmente no Rio de Janeiro, cheio de gírias, sotaques e trejeitos. Para adaptar o texto para a língua, o experiente Felipe Braga foi chamado. Percebe-se a natureza das falas originais por debaixo das bens construídas exposições em português.
Daldry usa de uma fotografia típica do gênero “filme de favela” para dar vida para o ambiente suburbano, mas filma com o ritmo de uma aventura da década de 1980. O que não o impede de demonstrar a parte cruel de forma mais visceral. Em certo ponto da fita, um dos garotos chega a ser torturado por um dos vilões. O resultado da aplicação de dor é uma bem realizada maquiagem que choca ao revelar como o menino fica. Nada de floreios para deixar mais palatável. Principalmente porque não é difícil de acreditar que um policial corrupto faria aquilo naquelas condições.
A crueza é importante para a mensagem principal do filme. Quando questionado porque continua agindo após sofrer tanto, Raphael responde hesitante: “Porque é o certo.”. São três meninos pobres que crescem numa comunidade que sobrevive do lixo. Ainda assim, quando é hora de tomar o caminho fácil e rápido, preferem sofrer para fazer o que é correto. Sem a violência óbvia da vida deles, a mensagem seria muito menos poderosa.
Apesar de estar sempre acompanhado de Rato e Gardo, Raphael é o protagonista principal do filme. São as suas ações que inspiram os outros dois a agirem corretamente. É ele quem precisa fazer a maior parte das escolhas difíceis do trio. Acima de tudo, ele tem as cenas nas quais o valor dos atos é colocado em questionamento. Protagoniza o clímax com uma cena tensa na qual faz a escolha definitiva sobre o caminho que vai seguir. O da bondade ou o da maldade. Criar um herói com conflitos tão densos em uma criança é uma escolha fascinante.
No Brasil, os dois primeiros nomes apresentados nos créditos são do Wagner Moura e do Selton Mello, mas os dois são meros coadjuvantes em relação aos três garotos, Rickson Tevez, Eduardo Luis e Gabriel Weinstein. Os três são talentos natos e dão conta de todas as necessidades do roteiro e dos personagens. Os dois astros brasileiros estão bem, mas não chamam atenção. O Martin Sheen está ótimo. Parece que quanto mais velho, mais carismático ele fica. A Rooney Mara aceitou o papel porque já fez o tipo de trabalho voluntário de sua personagem durante sua vida. Ela faz parte de uma cena linda de um diálogo entre duas pessoas que não estão juntas. Os dois atores internacionais aprenderam muito de português para a produção e somam muito ao filme.
Rooney Mara. Trabalho voluntário na vida real.
Trash é um filme sobre heróis. Daqueles que, nos momentos mais difíceis, obscuros e sem esperança, se erguem e sacrificam o que for necessário para que o mundo seja apenas um pouquinho melhor. Eu amo histórias do tipo e por isso mesmo, criei um grande carinho imediato pelo filme.
GERÔNIMOOOOOOOOO…