Em tempos em que discussões sobre representatividade ganham cada vez mais destaque, filmes que abordam o tema entram em uma área perigosíssima. Eles têm relevância social e precisam de destaque, mas se forem ruins, passam a ser danosos para que outros sejam feitos. Justamente por isso, este Uma Mulher Fantástica se torna ainda mais importante.
Marina Vidal (Daniela Vega) mora com o namorado Orlando (Francisco Reyes) há um ano, até que ele morre em uma noite. Além do luto, ela precisa lidar com a família que ele abandonou antes de ficar com ela. Já seria complicado se ela não fosse uma mulher trans na mesma idade que o filho dele e os familiares com quem vai ter que conviver não fossem transfóbicos.
A trama lembrou uma discussão que tive pessoalmente, quando um conhecido me disse que não acreditava que tinha a obrigação de saber como tratar pessoas trans porque sabia que não teria que conviver com nenhuma nos círculos sociais que o cercavam. Digo isso porque, em certo ponto, Marina é forçada a fazer um exame de delito, e o médico, surpreso ao descobrir que ela é trans, não sabe como tratá-la.
Parece pouco para o doutor, ainda mais porque ele tenta ser bondoso com ela, mas é de longe uma das cenas de maior violência contra Marina do filme. Não é física, mas a destruição de espírito e de moral é devastadora porque o médico, por não saber como lidar com uma mulher trans, é sintoma de uma sociedade que não tem espaço para ela.
E por mostrar cenas como essa de forma honesta, sem precisar recorrer a chorosos toques de piano ou de instrumentos de cordas ou a discursos sofridos, a dor de Marina se torna mais trágica. Mesmo xingada, ofendida e até ferida, ela se levanta com postura perfeita e em silêncio para seguir em frente, o que indica uma verdade cruel: ela está acostumada com esse tratamento diariamente e sabe que revidar vai apenas gerar mais violência e dor.
Não é à toa que o momento em que Marina fica mais abalada não é com agressões físicas, mas quando outra personagem a chama pelo nome de nascimento, e não pelo nome social. O que também só funciona pela sensibilidade com a qual a atriz Daniela Vega constrói a protagonista por meio de movimentos de olho sutis que revelam a dor por trás da compostura forçada.
O roteiro, porém, é lento (mas não sem ritmo) porque Sebastián Lelio (também o diretor) e Gonzalo Maza criam várias camadas narrativas para retratar a jornada de luto de Marina. Por um lado, ela precisa lidar com a perda de Orlando, o que a leva a várias cenas de fuga, como um momento em que um bar se revela atrás de um reflexo dela em um espelho ou quando faz sexo causal e tem uma fantasia de empoderamento.
Por outro, Marina tem que se reafirmar continuamente, em uma batalha interna que o filme deixa claro ser constante ao mostrar momentos de treino de canto para uma apresentação musical. Nessas situações, a voz dela varia do grosso para o extremo agudo, quase como um lembrete físico do corpo com o qual nasceu.
É um filme que leva a uma felicidade dupla por ser tão bom. Primeiro porque assistir uma produção de qualidade é prazeroso, mas também porque ele é fácil de recomendar além da relevância social. Eu certamente vou sugerir para meu conhecido transfóbico.