Relatos Selvagens chegou a mim como o novo filme do Ricardo Darín, porém ele é muito mais do que isso. O ator lendário de fato tem um papel de destaque no filme, mas não é, nem de longe, a melhor coisa dele. O que é um alívio porque Darín não é sinônimo de filmes de qualidade. Quando ele é a melhor coisa de um filme, normalmente é porque o filme é fraco, o que não é esse caso.
Os passageiros de um voo comercial descobrem que todos tem algo em comum. Uma garçonete percebe que o único cliente da noite é o homem que destruiu sua família. Dois sujeitos tem um desentendimento na estrada em que estão dirigindo. Um engenheiro de demolições tem o carro rebocado injustamente e sua vida entra em colapso em decorrência. Homem rico precisa lidar com o fato de que seu filho atropelou uma pessoa desconhecida. E mulher descobre que o marido a trai durante o casamento.
O filme busca discutir civilidade e, como o título sugere, selvageria. Como animais, os humanos possuem características bestiais em si, mas se esforçam muito para a vida civilizada. Em todas as situações, os desfechos discutem a dualidade com uma ironia cruel e hilária. A civilidade é uma armadilha para aqueles que acreditam nela, assim como a selvageria é o caminho para o desastre.
O filme é um caso muitíssimo especial porque é feito de curtas, mas todos são excelentes, sarcásticos e dão uma nova abordagem à discussão. O homem que confia na civilidade é constantemente colocado para trás pelo sistema corrupto e só encontra paz quando recorre à barbárie. Se os dois motoristas não tivessem cedido ao pouco de maldade que surge no calor do trânsito, não teriam chegado ao ponto final trágico de suas histórias. Apenas quando os dois protagonistas do último conto aceitam a brutalidade e seus lados animais é que conseguem ficar em paz.
Grosseria no trânsito. Tragédia poderia ser evitada.
O que leva o filme a um tipo de raciocínio naturalista, o que me incomoda muito, mas é possível notar que ele também abre espaço para a percepção de que ser educado e responsável também evita problemas, mesmo que atrapalhando a paz pessoal.
O diretor Damián Szifron tem domínio de mise-en-scène. Circula a câmera ao redor dos personagens enquanto esses agem saindo de um enquadramento para outro enquanto brinca com os planos sobrepostos. Quando a garçonete se abre sobre o passado de sua família, ela caminha com a câmera enquadrando cuidadosamente o cliente por cima de seus ombros. Eventualmente coloca a câmera em objetos que se movem. Quando a noiva foge pela cozinha, a câmera está presa em uma porta e o movimento da mesma faz com que a ideia do espaço fique lógica para o espectador.
O filme conta com muitos efeitos digitais de qualidade. Explosões com edificações se desfazendo ao lado de pessoas, um avião, um prédio inteiro é demolido. Tão bem feitos que sequer dá para notar. Não fosse o fato de que certas tomadas são impossíveis de formas práticas, eles não seriam notáveis.
Trecho do avião. Efeitos digitais que surpreendem.
O maior defeito é o fato de que se trata de um filme episódico. Cada história precisa de uma contextualização e de uma ambientação. Então ele precisa quebrar o ritmo de tantos em tantos minutos para que funcione. No entanto, assim que os conflitos são apresentados o ritmo é retomado e as ironias dão conta da narrativa.
Darín está ótimo, como se alguém pudesse duvidar disso, mas quem mais impressionou foi a atriz Julyeta Zilberberg como a garçonete do segmento As Ratas. O olhar de pesar dela diante da pessoa que arruinou sua vida é tenso e ela consegue equilibrá-lo com o medo e a raiva que surgem da situação. De resto, o elenco inteiro está ótimo, mas ninguém se destaca.
Julyeta Zilberberg. Grande interpretação.
O filme concorreu à Palma de Ouro em Cannes e é o indicado argentino para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Eu achava que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tinha grandes chances, mas tendo Relatos Selvagens como mostra do que ele vai enfrentar, a dúvida já veio à tona.
ALLONS-YYYYYYYYYYYY…
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