Existe uma trinca na produção cinematográfica que normalmente determina o valor final de uma obra. A parte da narrativa, a dos elementos visuais e a dos atores. Raramente um filme acerta nos três. Mais raro ainda é errar em todos. O resultado ou é algo repudiável ou uma pérola acidentalmente trash que funciona apenas para rir da tragédia alheia. Infelizmente o caso de Deuses do Egito já era previsível desde os primeiros trailers.
A trama se passa em um universo fantástico em que o deus Rá (Geoffrey Rush) criou o reino do Egito com os humanos e deixou que os filhos Osíris e Seth (Gerard Butler) vivessem entre os mortais. Quando chega a hora de Hórus (Nicolaj Coster-Waldau), filho de Osíris, tomar o trono do pai como rei dos humanos, Seth dá um golpe, mata o irmão, arranca os olhos do sobrinho e toma o trono. O ladrão humano, Bek (Brenton Thwaites), vê a namorada Zaya (Courtney Eaton) ser morta e busca o olho perdido do deus para barganhar a vida da amada. O deus ferido e o mortal se unem para salvar o Egito.
A intenção é a melhor possível. Filme rápido e divertido de aventura fantástica com uma construção original e honesta. Mas o inferno está cheio das melhores intenções. Ao contrário de outros filmes do gênero, a diferença de Deuses do Egito é que a base não tem as raízes comuns das mitologias gregas, mas das egípcias, tão ricas e interessantes quanto as que deram origem às culturas ocidentais.
Disso sai a segunda maior qualidade do filme. A mitologia egípcia apresentada na produção é riquíssima e possui muitas características interessantes: a forma como Rá criou o Egito; o fato de que o Egito é todo o mundo (é preciso lembrar que se trata de outra realidade); cada deus tem uma jornada de vida; leituras diferentes, e até mais positivas, da morte; o fato de que os deuses não são malignos com base nas funções deles; as barganhas feitas pelos poderes. Deve ser um dos objetivos dos realizadores, fazer pessoas ficarem curiosas sobre a mitologia.
A direção de arte é detalhada e minuciosa para fazer com que a mitologia ganhe as telas, mas falha ao ser espalhafatosa demais. Entre os tons de dourado que prevalecem, se encontram características azuis e vermelhas. Tem tudo para ser bonito por se tratar de uma cultura que durou mais de dez mil anos, mas é tanta extravagância que toda a ambientação do filme parece um desfile de carnaval. Basta olhar para a imagem principal do post para notar isso.
Só isso parece ruim, mas os péssimos efeitos digitais exacerbam essa mesma falha. Por conta de defeitos de textura em modelos tridimensionais, os atores se destacam como reais em meio ao digital. Com a decisão de sequer construir cenários para que os ambientes também sejam computadorizados, a falsidade tira o espectador do universo do filme durante todos os 100 minutos da duração. Nada parece verossímil, nem convence.
O que é estranho, uma vez que o filme é dirigido pelo Alex Proyas, que fez grandes produções com efeitos especiais. O realizador sabe criar estilos, mas exagerou a mão aqui. Dirige a ação com câmeras giratórias e faz transições de cenas com panorâmicas aceleradas demais. Com os 24 frames de velocidade os cenários tremem na movimentação. Isso porque a sessão era sem o efeito 3D estereoscópico, que realça esse defeito. Proyas, inclusive, confia demais na computação e coloca os atores em brigas com seres que não estão no set. Como os efeitos são ruins, nunca parece um risco real e o espectador não se envolve.
Mas mesmo filmes de ação precisam de conflitos e personagens envolventes para cativar o espectador. Infelizmente o texto da dupla Burk Sharpless e Matt Sazama (os mesmos culpados por coisas como Drácula: A História Nunca Contada e O Último Caçador de Bruxas, que também são criativos e vazios) é fraco. Para criar a história fazem com que a neutralidade da natureza dos deuses seja deturpada para que Seth seja um vilão megalomaníaco que quer destruir o mundo por birra com o pai. Não apresentam os contextos, mas colocam os personagens em diálogos bobos que explicam a história. O espectador vai ler nas legendas coisas como “Quando eu te pedi pra fugir comigo, era pra ter uma vida boa” ou “Você vai ser coroado hoje novo rei”. Como se as pessoas que escutam as falas no filme não soubessem das informações. É preguiçoso. Os diálogos também sofrem de uma necessidade boba de que todos os personagens tenham frases de efeito irônicas. De vez em quando pipoca uma realmente engraçada, principalmente quando se refere aos problemas que surgem da vida sexual da deusa Hathor (Elodie Yung), cujos poderes vêm da sexualidade, com Hórus, o amado dela.
A decisão dos roteiristas de fazer com que o filme se encaixe em uma estrutura comum faz com que toda a originalidade dos conceitos seja perdida durante a projeção. Além do fato de que a trama se assemelha demais ao Rei Leão (herdeiro vê o pai ser morto pelo tio e se refugia para redescobrir os valores de proteger o povo), o terceiro ato cria um monte de baboseiras para um final feliz forçado que não condiz com a cultura retratada.
Nem os bons atores – diga o que quiser, mas Nicolaj Coster-Waldau e Gerard Butles são ótimos intérpretes – conseguem sustentar as cenas quando têm que atuar contra fundos azuis o tempo inteiro. Os únicos do elenco que se salvam são Geoffrey Rush como Rá e Chadwick Boseman como o deus Toth. Rush é tão bom que consegue até elevar as atuações quando alguém divide a cena com ele. Boseman faz de Toth um bobo vaidoso e exagerado. Parece que o ator sabe da baboseira da qual faz parte e nem se esforça para atuar a sério, o que é ótimo.
Ao término, Deuses do Egito é um péssimo filme. Mas pode render uma grande sessão. Tanto o texto, o visual e as atuações são ruins, o que é raro. Quem busca um filme de comédia involuntária, vai se divertir. É recomendável que as pessoas vão com amigos e, de preferências, bêbados. Torna-se um filme hilário e diverte muito, assim como divertiu este crítico.
ALLONS-YYYYYYYYY…
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