Talvez essa seja a crítica mais difícil escrita neste blog. Êxodo tem muitas qualidades e defeitos. Muitos dos dois relacionados ao texto bíblico do qual o filme é adaptado. Daí surge a dificuldade. É impossível não ligar opinião pessoal à forma como o filme relata diversos dos eventos da Bíblia.
Moisés (Bale) e Ramsés (Edgerton) foram criados como primos pelo faraó Seti (Turturro). Um rumor entre os escravos hebreus sugere que Moisés é, na verdade, descendente do povo escravizado, e não dos egípcios. Segue-se então toda a trama do livro do Êxodo, com Moisés encontrando uma vida no deserto e retornando como enviado de Deus (Andrews) para salvar o povo hebreu e guiá-los para Canaã.
O filme é a versão do Ridley Scott dos eventos do livro do Êxodo na Bíblia. O foco é dado ao protagonista Moisés. Desde sua participação como general egípcio do governo que escravizava os hebreus, passa pelo exílio através do deserto, pelos conflitos para libertar o povo do qual se originou e a eventual fuga dos 400 mil escravos.
Escrever um roteiro para quase qualquer adaptação de textos bíblicos é complicadíssimo. As histórias do livro não possuem estrutura de roteiro e alterá-las para encaixar em um filme seria muito mal visto pelos religiosos. Elas possuem múltiplos conflitos sem foco em nenhum, assim como não têm começo, meio e fim específicos. Êxodo segue a história de Moisés à risca. Uma hora o roteiro se foca no drama dos dois parentes que se amam e não querem ser separados pelas regras de seu povo e a possibilidade de um deles ser hebreu de nascença. Na outra, o drama é sobre um homem que se encontra dividido entre salvar seu povo e se manter com sua família. Então passa a ser um drama de guerra e eventualmente volta para o conflito entre parentes. O filme é sobre tudo isso e sobre nada ao mesmo tempo. Em cada parte parece uma produção diferente e, justamente por isso, nunca envolve.
Scott porém, nunca se deixa levar para uma exaltação cega à religião. Muito pelo contrário. Apesar de ser extremamente fiel aos textos bíblicos, ele coloca diversos detalhes na construção da figura divina e suas ações que com muita frequência parecem mais uma crítica a Deus. Ele O representa como uma criança que é mimada, rancorosa e por isso impiedosa e cruel. Em certa cena Deus dá um chilique como um menino de quem um doce ou um brinquedo foi tirado. Essa crítica fica ainda mais forte através da figura do próprio Moisés. Logo no início ele relata que o significa da palavra israelita é “aquele que combate Deus”. Ele assume este papel ao iniciar como um homem descrente que, ao ser visitado por Deus, O questiona acerca de Seu comportamento. Moisés discorda das dez pragas do Egito e fica horrorizado com o mal que esse Deus é capaz de fazer a quem quer que seja. Por outro lado, não reluta em ajudar e tomar parte quando concorda com as ações da divindade.
Na ambientação é onde o diretor acerta mais. A direção de arte detalhada somada à tecnologia atual de efeitos digitais garantem um Egito verossimilhante e suntuoso. Na deixa para as ações divinas, a computação dá conta impecavelmente. Uma das coisas mais interessantes do filme é como Scott explica fisicamente as ações de Deus. As águas não viram sangue, mas são tomadas por ele quando jacarés se alimentam de pescadores. As rãs invadem a cidade porque seu habitat foi tomado pelo sangue, elas morrem de fome e os vermes e insetos aparecem para se alimentar delas. Com tantos seres rastejantes, as pústulas e doenças são transmitidas para os humanos. A chuva mortal que toma conta da cidade não é de fogo, mas de granizo e por aí vai. É muito interessante ver como essas representações de um poder maior são explicadas de forma lógica e plausível. Até a abertura do mar vermelho se dá por conta da passagem de um cometa próximo à Terra.
Chuva de granizo ao invés de fogo. A Bíblia mais cientificamente aceitável.
Scott também dirige bem as cenas, mas não constrói bem a história. Em parte porque o filme corre para apresentar os muitos eventos. Isso incomoda ainda mais porque muitas coisas são desnecessárias, como a batalha inicial. Por outro lado explora bem os dramas momentâneos, dando espaço para que seus ótimos atores expressem seus sentimentos. Diversas vezes Moisés e Ramsés são retratados em algum ambiente solitário tristes e pensativos. O diretor revela as cenas com movimentos de câmera que mostram primeiro os protagonistas para, com um movimento cuidadoso e planejado, mostrar uma ameaça que se dará através da cena.
É preciso dizer que, em termos de atuação, o filme pertence mais a Joel Edgerton que a Christian Bale. Apesar de Ramsés ser representado quase como um grande vilão maniqueísta, o ator consegue dar para ele uma dualidade complexa. Bale dá conta de cada um de seus dramas individuais, mas seu personagem não é muito coerente. Ele está melhor em especial quando dialoga com Deus. De resto, apenas o John Turturro se destaca. Ele dá nobreza para a figura do faraó Seti. Aaron Paul, Sigourney Weaver e Ben Kingsley estão lá só para constar mesmo. Dentre os desconhecidos, o garoto Isaac Andrews, que faz Deus, é muito bom. É um papel muito difícil, especialmente para uma criança.
Uma boa apresentação, grandes momentos e uma crítica sutil à religião representada não impedem Êxodo de ser cansativo com sua estrutura quebrada e falta de foco na narrativa. Ainda é uma tentativa ousada de levantar uma reflexão acerca da polêmica figura divina do antigo testamento, mas nem sempre a intenção é o que vale.
GERÔNIMOOOOOOOOOO…
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