Existe um clichê que nunca se adequou a nenhuma experiência pessoal minha com o cinema. Mas quando Mad Max – Estrada da Fúria estava com aproximadamente 20 minutos de duração, eu já queria assistir a ele de novo. Ao término da projeção, as emoções se repetiram com tanta eficiência que a vontade estava satisfeita. O que certamente não impedirá que hajam outras assistidas.
Max Rockatansky (Hardy) vive sozinho em um mundo devastado por uma guerra nuclear. Ele é capturado por homens de uma cidadela para ser bolsa de sangue (literalmente) de Nux (Hoult). Quando a Imperatriz Furiosa (Theron) sequestra as esposas do líder Immortan Joe (Keays-Byrne), cria a oportunidade para que ele fuja. Furiosa e Max descobrem que têm muito em comum e que podem se ajudar.
Estrada da Fúria se propõe a ser muitas coisas. Todas muito difíceis de se realizar. Releitura da franquia que lançou tanto diretor (George Miller) quanto ator (Mel Gibson), ele não é, nas palavras do próprio Miller, “nem remake, nem sequência”. A ideia é pegar o personagem e reinventá-lo com outro ator para tempos mais atuais. O que é ótimo. A trilogia original foi um choque para a sociedade global da época, mas sofria em certos aspectos técnicos que a fizeram envelhecer mal. Mesmo o segundo, que é o melhor, consegue ser incômodo pela montagem ultrapassada. Além de atualização de material clássico amado por fãs através do mundo, o quarto filme da série tem que ser também um blockbuster de verão de sucesso. O que é ainda mais difícil em tempos em que apenas filmes de classificação indicativa baixa fazem sucesso e Mad Max é uma franquia reconhecida pela violência extrema.
Escrito pelo próprio George Miller com a ajuda dos colaboradores Brendan McCarthy e Nick Lathourius, o roteiro de Estrada da Fúria é uma pérola. O que muitos apontam imediatamente é que não tem história e que se trata de uma grande perseguição de duas horas de duração. Mas é justamente por ser minimalista que o texto é tão bom. Com poucas falas e grande destaque para o visual arrebatador, o universo, os personagens e a história são ricos e complexos. Justamente porque eles nunca são detalhados por diálogos ou exposição é que eles podem parecer rasos. Entre as múltiplas cenas de ação grandiosa encontram-se pequenos momentos em que os desenvolvimentos de personagem são tratados com uma singeleza admirável.
O filme não desaponta na comparação da escala de violência com os anteriores.
O filme, é importante destacar, possui uma proposta nova. É uma ópera distópica, com direito a muitos tons de melodrama de grande qualidade. Todos os oito personagens principais possuem características próprias que são exploradas pelo roteiro de forma sutil, através de pequenos gestos dos atores ou de enquadramentos em que o cenário fala sobre o que eles sentem. Na cena mais bela e devastadora, Furiosa recebe uma notícia sobre o lugar em que nasceu. A reação dela e a forma como o deserto a emoldura falam mais sobre a jornada da personagem que qualquer monólogo faria.
Ao seguir a cartilha de ópera, Miller faz com que o compositor Junkie XL misture grandes orquestras que remetem às marchas de Wagner a temas condizentes com o cenários pós-apocalíptico. Enquanto os golpes de música ditam o poder dos exércitos de carro que seguem Furiosa e Max, detalhes de guitarra e sintetizadores eletrônicos distorcem a trilha. Nos momentos calmos, o tom é claramente melodramático, como em toda boa ópera que trata de grandes tragédias. Para quem acha a trama do filme simplista, pode parecer fora de lugar, mas a tragédia está enraizada no âmago de cada pessoa, e não nas ações.
Nicholas Hoult como Nux. Personagens complexos.
A fotografia de John Seale carrega na saturação de cores, em especial o azul, o vermelho e o laranja na terra. Os céus, por outro lado, parecem sem vida. O mundo parece radioativo e o ar morto, dignos de um holocausto nuclear. Além de servir ao universo, a fotografia destaca as intenções trágicas e cria enquadramentos de extrema beleza. Destaque para a disputa de carros dentro de um furacão. Essa sequência sozinha vale um ingresso de um filme. A direção de arte é engenhosa. Quando o mundo é regido por carros, areia e pessoas enlouquecidas, a criatividade é voltada para isso. Os carros são feitos para serem veículos de guerra, com direito a pessoas que passeiam pelos chassis, consertam motores enquanto estes rodam e armaduras preparadas para a destruição generalizada. Tudo com toques de personalidade daqueles indivíduos tresloucados.
Outro grande trunfo da produção são as cenas de ação. Elas nunca acontecem sem propósito para a história e esta se desenvolve através delas. E Miller é um mestre do gênero. Usa efeitos práticos todo o tempo, a computação gráfica se reserva a corpos que se acabam no chão ou para criar os elementos naturais, como a tempestade de areia. Sempre que um carro bate, capota ou explode, é feito de verdade diante das câmeras. Em uma cena, vê-se a cabeça de Tom Hardy passar a milímetros do chão em alta velocidade. Aquilo foi feito com o ator no meio do deserto, sem o auxílio de efeitos digitais. Essas escolhas tornam a violência mais visceral e verossimilhante. Além de não enjoar como nos ápices de obras como Transformes (qualquer um da série) e no último Os Vingadores.
Ação real com montagem elaborada.
Não fosse o bastante, Miller sempre coloca os personagens em desvantagem, o que cria medo no espectador por eles. A tensão é palpável sempre que alguém precisa lutar ou enfrentar um veículo inimigo. No único momento em que Max vai para batalha em situação superior, o diretor sequer se dá o trabalho de mostrar. Ele sabe que não terá um efeito satisfatório. Em meio aos confrontos de escala grandiosa, com direito a centenas de carros, caminhões e motos envolvidos, o diretor não permite ao espectador perder a noção de onde estão os personagens e o que acontece com cada. Faz isso com um domínio de montagem exemplar e com o cuidado de manter a ação de um no fundo dos enquadramentos de outro. Em certo ponto do clímax, Furiosa luta contra um homem enquanto dirige um caminhão. Em outro veículo no fundo do enquadramento, Max derruba um homem na pista. Quando o foco volta para ele, o espectador não se sente perdido e tem noção do que acontece com ela.
Tom Hardy é um Max vezes melhor que Mel Gibson. O personagem aqui vive sozinho há anos neste mundo selvagem e se reduziu a um estado animalesco. Com grunhidos cuidadosos e uma voz rouca de quem não diáloga há tempos, o ator constrói um personagem muito mais complexo que apenas um herói troncudo. A Charlize Theron se mantém à altura. Furiosa foi criada para ser um contraponto do sexo feminino ao herói e em diversos momentos ela se revela ainda melhor que ele para resolver as complicações violentas. Isso sem perder a profundidade de uma pessoa que se arrepende das coisas que fez para sobreviver e busca desesperadamente por redenção. Nicholas Hoult está melhor que nunca. Habituado a papéis franzinos e fragilizados, ele dá a Nux o nível certo de alguém que se perdeu dentro de uma religião e se descobre como pessoa com sensibilidade.
Furiosa nunca fica abaixo de Max em termos de protagonismo.
Além deles, é preciso dar destaque para a Rosie Huntington-Whiteley. A modelo que só tinha experiência como gostosa aleatória em Transformers faz uma mulher forte que inspira as companheiras a lutar pelo direito do próprio corpo. Muito superior a tudo o que Michael Bay pôde ver nela. Hugh Keays-Byrne volta a ser vilão da franquia depois do primeiro filme e faz uma grande performance. Immortan Joe possui uma deficiência que o força a usar uma máscara sobre o rosto. Toda a interpretação se encontra na construção da voz e em olhares expressivos. Ironia total que ele seja o antagonista do ator aclamado como o Bane da trilogia recente do Batman.
Estrada da Fúria é o melhor filme da franquia Mad Max. Simples em estrutura e complexo em profundidade. Violento sem ser burro. É um dos melhores filmes de ação em anos, um dos poucos blockbusters do ano que são feministas (dos oito protagonistas, dois são homens). Com estilo único, arrebatador, que serve à história e não rouba a atenção dela. Talvez a maior alegria ao término da sessão é saber que Hardy assinou contrato para quatro filmes.
FANTASTIC…
ATUALIZAÇÃO
Para quem tiver interesse, participei de um vídeo do Portal Crítico para falar sobre o filme. Para ver, basta clicar aqui.
Filme extremamente divertido, valeu muito o ingresso.